Ter direitos sem ter dever

Ana Cruz
O tempo sempre avança, ausente dos valores de quem nele habita. São poucos os que ainda se recordam da desigualdade entre cidadãos num época dominada por Salazar. Já não se fala da inexistência de apoio social; da inacessibilidade dos serviços de saúde e da escolaridade ser destinada para os afortunados…Quem relata o dia-a-dia dos tempos de ditadura, fala numa tranquilidade miserável, desconhecendo o conceito de direito\ dignidade humana, porque a filosofia era beneficiar a nação em prol da defesa individual de cada cidadão. De fato era incutido que o povo não necessitava de modernidade porque seria o Estado responsável de tais preocupações. Ter acesso a conhecimento e igualdade de direitos era algo a investigar, porque exigia-se ao povo dedicação no trabalho, essencialmente rural, e qualquer individuo que demonstrasse vontade em desenvolver outra forma de pensar ou viver, era “tranquilamente” visitado pelo “defensores do Estado”. Assim, era o tempo “perfeito” do Salazar, que tantos agora anunciam como “Salvador da Pátria” e desejam o seu regresso. Esquecessem-se que nesse tempo não havia subsídios, abonos de família, serviços de saúde acessíveis. Que qualquer protesto era silenciado (a famosa liberdade de expressão que toda gente tem por garantida!), e que no senso comum era a ciência mais utilizada! Utilizar os recursos essenciais (comida, saúde, habitação) de forma modesta e não desperdiçar era o mote glorificado. Concordo com este ideal de gerir os recursos essenciais de forma regrada, não desperdiçando os bens que existem, considerando que alguém irá se responsabilizar caso eles falhem. Porque neste momento é que acontece com o panorama global de qualquer democracia liberal.
Num tempo de deveres, porque os direitos eram “vícios” gerados por ideais comunistas, era humilhado quem não trabalhava no campo. Quem tinha dores ou queixas de saúde, era colocado de lado com o rótulo de preguiça ou se conseguisse um médico benfazejo tinha algum alívio a troco de ovos ou galinhas. A morte era assídua em crianças e adultos acima dos 60 anos, porque nem o mais dedicado médico conseguia milagres perante ausência de equipamentos (ambulâncias, hospitais especializados só surgiram a partir da década de 80), e o martírio de ver perecer o povo trazia mais dedicação e mais humanismo aos médicos dessa altura, por saberem que a saúde é um bem único e finito. Qualquer pessoa que possuísse conhecimento como debelar a doença era detentora de um respeito pela comunidade, porque sabiam que todos ficamos doentes. Desde a mais simples tosse, à dor de costas, às borbulhas mais incómodas, havia sempre uma curandeira que conhecia um bálsamo, uma pomado, emplastro que aliviava o sintoma. O médico tinha respeito por essas pessoas e vice-versa, porque todas sabem os seus limites, e remédios caseiros que não resultam significavam sempre um pedido de consulta médica. De fato os médicos questionavam sempre se tinham tomado o remédio caseiro para saber qual a influência no sintoma. Ninguém chamava ou ia ao médico por um arranhão de gato, picadas de melgas, constipações de 3 dias. Sabiam, por senso comum, que o corpo necessita de descanso e remédios para recuperar. Que a febre faz parte da doença e que tinham de baixar a temperatura para não alucinar. Analfabetos, sem água corrente ou eletricidade, conseguiam ter mais noção do normal do que hoje o mais doutorado e carregado de tecnologia, quando tem um espirro!
É um direito de todo e qualquer cidadão português ter proteção da saúde, mas também é seu dever defender e promover a sua saúde com comportamentos que favoreçam a mesma. Delegar culpas aos profissionais de saúde por falta de saúde é uma injúria gratuita e desmedida de consciência do seu dever e ações. Agora coloco esta situação tão, infelizmente, costumeira neste Portugal tolerante e pouco responsável: eu sinto dores de barriga à meses, já fui ao médico de família, já fiz exames, já fui medicada, mas apenas tomo quando me apetece. Hoje acordo com imensas dores de barriga, culpo o médico que não me soube tratar e para evita-lo ligo o 112 e queixo-me de dores horríveis para virem-me buscar a casa para o hospital. Faço isto porque sei que nunca irei pagar a ambulância, porque não estou para incomodar o vizinho ou a filha e também porque não tenho de gastar dinheiro num táxi! Preparo-me, vou buscar os exames que o médico que não me tratou, me mandou fazer e espero pelos bombeiros. Só que neste exato momento o meu neto caiu na escola e bate com a cabeça ficando desmaiado. Enquanto eu ignoro isso reclamo com os bombeiros por demorarem 10 minutos a chegar a casa, e passo o trajeto todo até ao hospital a escarnecer o serviço de saúde. Por sua vez a escola liga para o 112 que informa que a ambulância mais próxima está de serviço e que para assistir a criança têm de esperar 20 minutos. A ambulância que eu estou a utilizar para as minhas dores de barriga de à meses foi desencaminhada do meu neto que está caído no chão da escola.
Isto é uma história, pode ser ou não verídica. Mas é um retrato de um Portugal que estamos a criar. Desvalorizamos o que temos e prejudicamos quem precisa sem ter a noção das consequências.