MEMÓRIA DE UM TEMPO COM MEMÓRIAS

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A LEITEIRA… ….DA ALDEIA ATÉ Á VILA
No estábulo “ rosmaninha“ e “mimosa“ estão agitadas, impacientes porque já pelas frinchas da porta de madeira penetram uns tímidos raios de uma claridade escoada. E como imagem luminosa vinda de um espaço misterioso surge no umbral da porta a leiteira de balde na mão. Ajeita-o á luz da candeia e puxa o tosco banco de madeira, aprontando-se para a ordenha entre os vagos mugidos das pachorrentas vacas. Pela manhãzinha logo começa a entrega. Com gestos distraídos de aurora sorridente, ligeira vai a leiteira. Na cabeça um cântaro de leite, outro numa das mãos e na outra ainda os copos de lata que serviam de medida. Diáriamente ainda noite, mas quando já a luz se começa a vislumbrar nas frestas da manhã, palmilha a mal asfaltada estrada em direcção á vila de Mangualde. Erguem-se na margem ermos pinheiros e seculares carvalhas estremunhadas e embebidas em altas ansiedades. Com os pés mal calçados pisando uma geada estaladiça, encaramelada que rangia como vidro quebradiço sob o peso do seu corpo de pluma. Dirigia-se ao “depósito“ do leite para o pesar (ser verificada a sua densidade) e medido. Era uma velhinha casa com portas oscilantes, desconjuntadas já das mãos e do vento e amolecidas do contacto brando dos longos dedos húmidos da chuva. Humildemente vivia divinas madrugadas de estrelas, nuvens e ventos. Era esta uma manhã enganosa de um sol tímido rasgando o horizonte longínquo prometendo uma manhã radiosa. Mas sem que nada o previsse o céu toldou-se e tornou-se plúmbeo. Logo se previa a queda de um forte nevão. A leiteira aligeira o passo na sua distribuição porta a porta. A volta é sinuosa e longa e sempre a calcorreia quer faça sol, quer chova, vente ou neve. As suas madrugadas alvorecem com uma bruma de sonho e de beleza, mas da sua face transparece um nevoeiro d’alma, como mistura informe de sono e cansaço. Mais uma porta de um freguês, mais uma medida despejada no recipiente pendurado, e sempre o mesmo sorriso alegre de uma saudade ausente, sem um suspiro nem um ai. Era o seu ganha pão, a sua vida, o grande sacrifício que a natureza lhe exigia, mesmo quando as nuvens pesadas se levantavam como sombrias rochas de granito.
Termina a volta, regressa á sua velhinha casa com sacadas ornadas de cheirosas rosas de Alexandria, craveiros na escadaria e violetas nas janelas. Seu berço que durante o dia o sol aviva e á noite a escuridão desfalece.
Amanhã será mais um dia e uma nova e dorida volta, talvez uma manhã de uma luz nova e alvorescente por uma estrada ladeada de matagais onde de ternura os pinheiros.