Expressar a dignidade

Ana Cruz
Constato, com grande contentamento, que as pessoas são mais informadas acerca dos seus direitos, especialmente relativos á sua saúde. Apesar, como cidadã, estar satisfeita com esta mudança cultural isto revela que o Estado não escuta e não quer interpretar os dados desta mudança.
Em tempos, a igualdade de oportunidades era algo julgado à sorte de nascer numa família abonada financeiramente e\ou estar bem posicionada na política do Estado Novo. Hoje em dia o favorecimento de familiares ou conhecidos já é uma rampa para escalar a montanha do sucesso profissional, mas mesmo assim todos iniciam a vida académica em condições similares.
Ainda existem muitos indivíduos que iniciaram a sua vida profissional na época da ditadura, e que foram agraciados pela generosidade de uma madrinha ou padrinho. Tiveram uma ação que mudou radicalmente o seu futuro, desviando de uma vida produtiva ligada à terra e muitos sacrifícios físicos, para uma vida académica ligada ao conhecimento que apenas as grandes cidades podiam fornecer e devotando a uma distância de formação pessoal que os coloca a anos-luz dos comuns mortais. Tal é a sua consciência de superioridade, que se esquecem que também eles estão sujeitos às leis terrenas e valores morais. Que o poder não é um joguete de crianças mimadas, mas uma ferramenta de grande responsabilidade e deverá ser conservado e transferido para as gerações futuras. Fico orgulhosa por uma pessoa não tolerar ser negligenciada e insultada de forma omissa, apenas porque quem ofende tem mais reconhecimento académico ou social. Apenas por ser um. Porque somando todos os “uns” desrespeitados, quem detém o poder fica com credibilidade zero. Zero confiança. Infelizmente paga a equipa, porque a atitude de um elemento reflete, incorretamente no todo. Assim uma relação de mais de 20 anos, com complacência em desculpar de quem lhe trata da sua saúde, passa para um corte radical devido à má resposta pessoal de quem devia tratar. Perdeu quem cuida. Perde a instituição, uma pessoa que sempre foi passiva perante adversidade do direito de saúde. Ora a lição é esta, (e que o Estado custa em aceitar), o lesado foi a outro local que nunca tinha entrado anteriormente, e foi atendido meticulosamente, corroborando a necessidade da procura de saúde, e conservou a sua dignidade. Porquê apresentar reclamação? A ideia vulgar, é que este assunto nem é considerado como motivo de ofensa- “Pois, se calhar estava cansado de tanto trabalhar!” ou “Vou precisar dele no futuro quando estiver doente. Respira e aguenta a calúnia!”. Assim a sua opinião foi suportada na mudança de local de atendimento para tratar da sua saúde. Local onde foi sempre atendido desde a sua nascença….Do ponto de vista de gestão, perder clientes no privado é encerramento, no estado perder clientes é cortes de pessoal na certa. Mesmo com sindicatos a defender os direitos adquiridos, ter uma equipa de 20 pessoas a atender 500 pessoas não faz sentido económico!
A desculpa mais frequente é “idade”, “falta de adaptação” a utilização banal de “burro velho não aprende línguas”. Não existe correspondência de diminuição da aprendizagem e o envelhecimento, mas resistência à mudança é algo que escapa do controle do acomodado. Como posso exercer a minha arrogância se tenho que demonstrar que não sei tudo? De fato, esta ideia é tão absurda como um cirurgião sarcasticamente falar em consentimento informado a quem vai operar “Já viste isto? Agora temos de operar com autorização do doente! Sorte tem ele em eu ainda o operar!” É fantástico ouvir isto e não pensar que tipo de desempenho irá ser realizado, porque sob anestesia geral tudo fica no segredo… da equipa!
Numa sociedade organizada, os estatutos sociais são a base para uma interação social. Assim é natural perante uma determinada profissão que o seu papel tenha determinadas expectativas geradas\ adquiridas perante a comunidade\ grupo onde exerce. Mas isto não define a grelha de valores sociais que a pessoa tem ou deverá ter. Esta é a mudança, que considero positiva, que vejo na interação entre estatutos ou papéis sociais. A formação pessoal, outrora designada pela educação dada pelo ambiente familiar, passou a ter várias origens. Assim o brio de ser honesto, respeitoso, generoso, foi substituído pelo egoísmo, competição e cobiça.
A ironia deste revés é que a maior parte dos indivíduos que estão a seguir o caminho de discriminar e não ajudar\ colaborar o próximo esquecem-se que também eles tiveram no papel de ser ajudado. O menino pastor que foi para Coimbra estudar, foi ajudado pelo padrinho; a menina costureira que foi para Coimbra estudar, foi ajudada por uma mãe que perdeu o filho e reviveu a esperança de contribuir para uma melhor sociedade.
O estatuto foi adquirido. Mas muito se perdeu na melhoria de condição de vida. Mas nada é infinito, este ciclo será quebrado pela dedicação dos mais novos em dar equidade a quem nunca ouviu falar do termo. Porque todos somos diferentes, logo temos diferentes necessidades. Esta é uma das bases da justiça social, distribuir para que todos tenham igual direito.