AINDA ME LEMBRO!!!…

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“FAZER” A AGUARDENTE NO ALAMBIQUE
A aguardente bagaceira sempre teve um aspecto popular de rusticidade ligada ao homem do campo. As películas como os agricultores chamam, as cascas e as grainhas – que são sementes da uva – têm no seu interior óleos essenciais que dão á bagaceira sabores típicos muito apreciados. Era tão normal “ir fazer“ a aguardente no alambique de cobre como pisar as uvas e tirar o vinho do lagar. Voava a carroça de um burrito frenético transportando os sacos do cachiço que vencia diariamente a braveza do curto caminho escabroso e íngreme, e os aldeões não descorando á passagem as denegridas cruzes (alminhas) lembranças que flutuam dos mortos, descobriam-se e num gesto desajeitado rodavam nas mãos as boinas numa temência respeitosa. Era o alambique na quinta dos “Melo“. E num aroma de almas com espírito de clara realidade o dia para “fazer“ a aguardente tinha que ser previamente marcado. Feita a vindima e pisados os cachos, depois de alguns dias de fermentação é retirado o mosto (vinho) e cheios os pipos de madeira. Os restos, o cachiço ou engaço (pedúnculos e ramificações dos cachos), as peles e as grainhas ficam no lagar mais uns dias a escorrer. Os agricultores, homens tão espessos como os montes mas com a sensibilidade de um artista que dilui tudo em místicos alvores, armavam no centro do lagar o azincho e a prensa para espremer o cachiço (canganho) Retirado depois de devidamente enxuto era colocado dentro de uma dorna, coberto com folhas de videira e aterrado, assim conservado até á destilação e evitando uma invasão de mosquitos. Já no alambique é despejado nos potes de cobre aquecidos num lume forte para a mistura ferver e libertar um vapor espumoso em remoinhos, passando pelo interior de outro pote em serpentina onde circula água fria iniciando um lento processo de destilação. A primeira aguardente retirada é como água destilada (fleima) que era provada aos poucos como orvalhando lábios sequiosos, e só á medida que decorria a destilação ia saindo cada vez mais forte acompanhada na prova de um aaaahhhh!!!!... bem exclamativo pelo aquecimento fervilhante da garganta com uma eruptiva comução de gagueira e de tosse em que os olhos ficavam reféns de umas lágrimas de choro preso, voltando no final a perder o gau do seu teor alcoólico. Era natural caldear a aguardente mais forte com a mais fraca obtendo o grau certo da mistura. A aguardente sai quente e quando arrefecida é guardada em garrafões de vidro conservados bem fechados. Mas isto é uma festa que a tradição popular aproveita com alegria. No alambique assam-se as batatas com casca na fornalha, cebolas e bacalhau. Mistura-se tudo com bastante alho, regadas com o ouro líquido dos nossos olivais, o nosso luminoso azeite e como o garrafão é símbolo nacional o repasto é acompanhado com um vinho levado da adega e tirado ao espiche do tonel da colheita desse ano. Ficavam os estômagos aconchegados para a feitura da aguardente durante a noite em que um prateado luar se ouvia cair sobre as ramagens. Ensonados no silêncio de uma noite religiosa e no regresso a casa, já com o romper da aurora nas tranças do dia nas pegadas serenas da manhã ao aconchego de um qualquer sozinho lugar da minha aldeia onde as sombras do Outono são sempre eternas revestidas de uma tristeza pálida de ausências nostálgicas. São tempos de saudade, as nossas saudades de agora são as de uma risonha posteridade que não mais viveremos.