CONTOS COM MEMÓRIA

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A SARDINHEIRA (Um conto da minha avó)
Pairavam ainda no ar os ecos de uma segunda guerra mundial que abrira profundas feridas na arraia - miúda. A fome e a miséria coabitavam com toda a populaça rural da nossa região e a minha aldeia não fugiu á regra. Numa humilde casita alicerçada em “pedra borralheira“, prometendo esboroar-se a toda a hora, coberta com telha vã e divisões em ripas, num casal isolado no arrabalde do povoado vivia a Micas. Era uma viúva que já ia no sexto filho que de tão pequeninos quase cabiam na canastra que todos os dias transportava á cabeça para vender as hortaliças e os legumes da sua lavra na vila de Mangualde. O seu único sustento provinha-lhe do cultivo de duas pequenas leiras que arrendava já do tempo dos seus finados pais, da criação de alguns coelhitos, galinhas poedeiras e frangos, estes só para dias de festa ou quando alguém acamasse. O amanho da terra, o cuidar dos filhos e o dia – a – dia da jorna cavando e semeando nas leiras dos senhores abastados da aldeia para fazer proveito de alguns magros tostões, tomavam-lhe todo o tempo. Os filhos ficavam entregues á filha mais velha menina de perfumados doze anitos, flor de natureza frágil e dolorosa com estrela que já sente de longe os olhos que a contemplam. Quando algum galináceo anunciava com alarido o rompimento da casca de mais um pinto gerava-se alarido na capoeira e na filharada. A excitação e alegria era grande quando havia um dia de três ou quatro ovos. Era a troca de um ovo por uma sardinha que dava para dois, três sardinhas seis filhos.Para si um pequeno naco de broa bastava. Micas era analfabeta, escola nunca vira, mas a fazer contas nem o taberneiro da aldeia lhe deitava água nas mãos. Toda a alimentação da sua prol, tanta boca faminta era a sua grande preocupação.
- Amanhã vem a sardinheira! … Vamos todos comer sardinha! …
Foi uma festa antecipada entre a filharada. Mas a sardinha exigia troca e precisava de mais dois ovos para juntar aos que já tinha. E se as galinhas se portassem bem, talvez pudessem cada um comer uma sardinha inteira. Era a sardinheira uma velhota “que nunca mais morria“ como se lamentava quando chegava à porta do freguês com a caixita à cabeça de madeira mal amanhada com as sardinhas já ardidas… ardidas sim, porque ardiam na boca de tal forma que ás vezes a “empolavam”. Os tempos eram difíceis e não corriam de feição para o negócio. Como rareava o dinheiro, aceitava os ovos ou os próprios galináceos como moeda de troca para no dia seguinte vender na vila de Mangualde. Mas nem sempre as coisas correm de feição. A sardinheira estava próxima a chegar e o raio das galinhas não deitavam cá para fora os tão almejados ovos. Debicando aqui e acolá muito entretidas entre si, a cacarejar mantinham-se alheias, não tendo sequer a noção da aflição que estavam a provocar. Mas a necessidade aguça o engenho e Micas teve um rasgo luminoso uma ideia brilhante: molhou o dedo mindinho bem molhado em água, passou-o por sal grosso e introduziu-o no “oveiro“ das galinhas para abreviar a postura. Alvoroçou-se a capoeira quando em breve tempo passado as galinhas cantaram a anunciar a boa nova. Estalou a festa entre a pequenada, houve uma sardinha inteira para cada um, sardinha que pingava na broa e ardia na boca.
Sentada na soleira granítica da sua velhinha casa, embrulhada no seu xaile preto de lã , quando o sol poente já lhe batia na sua fronte rugosa e pensativa, perescrutando o horizonte com o seu nublado olhar, absorta inquietava-se nas suas cismas.
- Olha meu neto, nunca te esqueças do velho rifão: “nunca contes com o ovo no cu da galinha“.