AINDA ME LEMBRO!…

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TEMPOS …
A vida tem as suas aventuras, rimos, brincamos e pressagiamos as nossas míseras desventuras. Perdidos no passado não fiquemos ensombrados com aquilo que podemos desfrutar no presente. Saio de casa e vago lá por fora na santa solidão da minha aldeia a interrogar as sombras que me fazem recordar. E ainda me lembro!… Curtidos por sóis e ventos, ocasionalmente apareciam “os farrapeiros“. Homens de barba restolhuda e cabelo desgrenhado, roupa deslavada e meio remendada, criaturas de condições humildes que de saco às costas ou numa desengonçada carroça com um velho burrito se dedicavam à compra de farrapos, trapo velho para confecção de mantas, “mantas de farrapos“. Deambulavam de aldeia em aldeia de rua em rua ébrios de sol de azul e de amplidão, “apregoando“: Compramos farrapos, sarro (1) e dentição (2), alheios aos animais frenéticos que surgiam, mortos por lhes arremeterem. Negociantes que compravam e vendiam roupas velhas, papel, ferro velho, metais, peles, ceras ou objectos usados. A pouca abundância de matéria prima exigia a sua diversidade. No Verão quando a viçosa paisagem, que o sol ama em brando sonho ou o fumo da névoa se desfazia, montavam tenda e acampavam ao ar livre, em noites serenas numa contemplação de montanhas soturnas admirando no horizonte os ermos vales e os rochedos nus, num suavíssimo turpôr, ouvindo na calada da noite o canto genial do rouxinol e com o estômago à tona da água, mal cheio, mas avisado da escassez de alimento sabiam encontrar muito no pouco, tendo o sol como meia mantença. No Inverno com um ar limpo e o céu geadeiro ou os rochedos submersos em alvuras quando nevava pareciam concentrar-se em oração, aqueciam as mãos e o coirato dos pés descalços às labaredas crepitantes de umas pernadas de uma qualquer árvore seca, sentindo o frio retirar-se devagarinho dos ossos como geada a derreter-se ao sol. E em sobressalto a noite ia fugindo. Eram como aves do céu que a gente via sonhando, como sombras de anjos que passavam num clarão. Os tempos mudam como rios fabulosos que em profundos e quiméricos vales deslizam, hoje os vimos com a merecida importância que tiveram para o Planeta Terra por serem amigos da Natureza. Foram pioneiros no aproveitamento de materiais velhos ou usados que desfiguravam ou prejudicavam o ambiente. Potencial lixo que era nova matéria prima capaz de ser reutilizada contribuindo para uma melhor qualidade de vida. Trapos e farrapos são hoje fonte de preocupação com a forma e a maneira de os reciclar. Vivemos num mundo viciado no consumismo que nos leva ao exagero de as famílias acumularem roupa sobre roupa “é só trapos e mais trapos, farrapos sobre farrapos“. E como corolário de um mundo consumista se um casal decide viver em união, vulgarmente se diz “juntaram os trapos, acumularam farrapos”
1) Sarro (sedimento deixado pelo vinho no fundo das pipas)
2) Denticão (Pequeno grão em forma de dente que aparecia na espiga do centeio e que era usado para fabrico de medicamentos)