Quando a Saúde limita a Liberdade

Ana Cruz
Vivemos momentos inéditos a nível social, em que o contato físico próximo constituí um risco para a Saúde Pública. Ter de se submeter a regras, prejudicando a minha vontade ou escolha individual é incompatível com o conceito de Liberdade individual, mas vivendo em sociedade coloco esta questão: quando prejudico a liberdade alheia, de forma deliberada, estarei consciente do delito que estou a cometer? A escapadela para o convívio social em espaços exíguos; o almoço familiar de Domingo sem distanciamento físico; o escárnio de quem usa máscara e luvas…. Tudo isto e mais algum comportamento associado, demonstra uma incúria perversa quase qualificável de insanidade psicótica. A complexidade de ter direitos numa sociedade democrática confere o fenómeno de ter deveres.
“Entre as brumas da memória…”, a estrofe do nosso hino português, retrata bem o que irei desenvolver neste artigo, o fato de muitos não terem memória ou estarem desmemoriados de um passado que deve ser louvado pelas garantias que temos atualmente!
Sendo da geração pós 25 de Abril, seria natural valorizar esta data apenas como um feriado nacional, razão para não ter aulas ou trabalho. Até podia manifestar-me numa avenida qualquer com estandartes alusivos à liberdade e cravos a enfeitar a indumentária, desconhecendo a verdadeira causa desta data. De fato, parece maravilhoso toda a festa associada à revolução que trouxe a democracia a Portugal, quando em muitos discursos falam da repressão das gerações anteriores, mas são pouco claros nos sacrifícios foram sujeitos….
Democracia e liberdade, foram os pilares da construção de um novo regime politico em Portugal, que supostamente seria sustentado pela vontade do Povo. Infelizmente, atualmente poucos são os que reconhecem as decisões do Povo na Casa da Democracia, porque se no Estado Novo existia a censura, na atualidade existe a advertência condescendente na Casa da Democracia! O reparo formal, mas ácido do Presidente da Assembleia da Republica, Dr. Ferro Rodrigues, remete às correções que o aluno faz um professor que se engana ao ler a ficha de atividades e obtém esta magnânima resposta: “Está bem, Joãozinho! Mas eu é que sou o adulto e mando, por isso esteja caladinho!”
O óbvio é tão chocante que ninguém tem ousadia que falar… A falta de união e capacidade de racionalidade existente, só poderá ser justificada com a falta de gestão emocional pelos representantes políticos portugueses! Chocante desvalorizarem o momento, que foi o 25 de Abril, para depois afigurar-se de um direito que foi ganho…pelo 25 de Abril! Claro que devemos seguir as orientações da Direção Geral da Saúde - que foi fundada para combater uma epidemia, denominada por Peste Bubónica, originária da China, que surgiu no Verão de 1899 no Porto. Na altura o responsável máximo da Saúde do Porto, era o Dr. Ricardo Jorge, que devido à sua tenacidade e dedicação foi homenageado com a concessão do seu nome a uma instituição que promovia a saúde através de investigação cientifica, sendo atualmente um laboratório de referência a nível nacional e internacional.
No entanto, nunca serão de desprezar os valores de solidariedade, compaixão para além de igualdade de direitos que foram adquiridos de forma revolucionária e pacífica. As desigualdades ainda são visíveis, mas menos evidentes. E possivelmente a censura, apesar de velada, ainda é existente em certas camadas da sociedade, porque se houve quem foi restaurada a liberdade, muitos foram os que sentiram lesados, pela ausência da proteção do regime de “Deus, Pátria e Família”. De fato, recordo-me de um colega de escola discursar efusivamente contra o 25 de Abril, porque os terrenos que o avô tinha no Alentejo, foram “roubados” – expropriados era o termo correto- pelos agricultores. Logo insurgiu um professor (Prof. Alvoeiro) que dificilmente conteve a sua fúria, perante a afronta do jovem. Criticar o evento já era um ultraje, mas ofender quem tinha sido convidado para falar sobre a repressão no Estado Novo ultrapassava os limites! “Ouve lá, meu menino: que sabes tu acerca da época do Salazar? Falas do roubo do teu avô? Então porque não falas de quem foi preso e nunca mais voltou, hein?”. Independentemente desta circunstância, sempre reconheci neste professor uma honestidade provocadora e sofrida. Um grande bem-haja para a família Alvoeiro da zona de Arganil!!!!
Adiante… Cada história tem sempre perspetivas diferentes, e hoje quem ri, amanhã poderá estar angustiado. Nada é garantido, apenas o reconhecimento que respeitando e valorizando o outro posso também ser respeitado e ter agraciado com solidariedade e compaixão. Numa sociedade cada vez mais competitiva e desumana, esta reclusão trouxe uma realidade esquecida pelos tempos. Porque onde o Homem vê imortalidade na sua superioridade financeira, social ou material, um simples organismo consegue invadir essa falsa segurança e destruir a sua soberania. Será utópico considerar que este confinamento trará uma nova e melhor mentalidade?