SANFONINAS

dr. jose
As botinhas de criança
Estava uma manhã morrinhenta e eu olhava pró chão, a caminhar. De repente, as botinhas! Jaziam ali, uma ao lado da outra, arrumadinhas, protegidas pelo tronco nodoso do ulmeiro em fase outonal de folhas amarelecidas. Pequeninas, seriam de um bebé de meses, a quem deixaram de servir, e a mãe veio pô-las ali, por onde tantos passamos no dia-a-dia. Talvez a alguém pudessem servir. Delas se exalava um hálito quente de ternura, na morrinha fresca desse final de manhã. Não ousei tocar-lhes, porque meus netos já são grandes e meus sobrinhos-netos também. E veio-me de imediato ao pensamento Augusto Gil: «… e noto, por entre os mais, os traços miniaturais duns pezitos de criança… E descalcinhos, doridos…a neve deixa inda vê-los…». Neve, aqui, não há. Crianças descalcinhas, isso sim. E eu fico na esperança de que alguém, minutos depois, horas depois, amanhã, passe ali, pare e diga de si para consigo «destas botinhas eu preciso»…
Estiveram lá dois dias. E choveu. Não sei se o varredor as levou, se mesmo alguém que delas necessitava. Oxalá tenham servido. E louvei o gesto de quem ali as deixara, à vista de todos, na esperança de acalentar um conforto.
Eu fora, dias antes, à loja social que a Junta de Freguesia decidiu abrir para receber roupas, calçado, ‘coisas’ da casa de que os fregueses já não careciam e ali punham à disposição de quem os quisesse vir comprar. «Comprar», escrevi. Nem que apenas por um euro ou cinquenta cêntimos. Ao que é oferecido nem sempre, infelizmente, se dá valor. Levámos sacos com muita roupa e calçado que já não servia e ainda estava em bom estado e poderia ser agasalho de quem não tem. Dessa dita «classe média» envergonhada, por exemplo, em que marido e mulher ficaram sem emprego e há filhos e até netos para sustentar e casa para pagar e prestações a vencer e nem vinte cêntimos sobejam para matar a fome…
Tinham bons atacadores as botinhas de criança. Estava tudo muito bom para voltar a ser usado, como, entre os nossos amigos, trocamos amiúde roupinhas de bebé e até as caminhas e tanta coisa que apenas serviu pouco tempo e agora tanto jeito dá! Minha filha até o leite – que tinha em abundância – partilhou com a amiga que o não tinha – e eu ganhei uma «neta de leite»!...
Sensibilizaram-me as botinhas. Senti-me mais cidadão numa sociedade em carência… e em solidariedade crescente! Benza-a Deus!