SANFONINAS

dr. jose
Milhões, milhões, milhões!...
Septuagenário me confesso, incapaz de compreender exactamente o significado da palavra «milhões», mormente quando ela é aplicada a verbas. Verbas de venda e compra de jogadores; verbas que foram desviadas por grupos organizados, com a convivência de alguns outros em que se depunha confiança; verbas necessárias para colmatar os prejuízos causados por um tornado ou uma chuvada maior que a falta de adequado planeamento urbanístico provocou; milhões que se esvaem, porque o Estado os não soube aproveitar; milhões que podem ganhar-se, se se jogar no… euromilhões ou mesmo na lotaria ou no totoloto…
Tornou-se tão banal que nem sequer nos vem à cabeça, um dia, fazer a comparação com os contos de reis de não há muito tempo, quando o milionário era aquele que lograra amealhar ou ganhar… mil contos de réis!
Curiosamente – cá está a ‘história’ do septuagenário… – sempre que consciencializo a expressão «milhões de euros» (a maior parte das vezes referente a dívidas, a falcatruas, a… ‘branqueamento de capitais’, que, inocente, não sei o que isso é…), o meu pensamento corre, vamos lá saber porquê, para o restaurante do meu bairro. É que o restaurante do meu bairro tem um recanto que eu ousaria chamar «de ternura». Ali se sentam, ao almoço, quatro ou cinco dos anciãos do bairro, que vivem sozinhos numa das casas próximas. Outro dia, demos pela falta de um: tinha partido!... Quando lá vou buscar comida, procuro ter sempre um bom-dia simpático, que já os conheço há décadas e sinto que aquele tempo do almoço e o do antes e o do depois é, para cada um deles, o bom momento do dia. Lá comem a sua sopita, meia dose do prato do dia, regada, quando o médico não proíbe, por um copito de vinho… E conversam do hoje, do ontem e pouco do amanhã, que o televisor ali na parede ao pé deles raramente lhes traz motivo para pensar no amanhã.
«Recanto de ternura» o baptizei eu, para mim mesmo, que a ninguém ainda o disse. A ternura de um envelhecer que queremos sereno, a viver dia após dia com os ralos euritos da reforma, quando no televisor ao pé se fala é só de milhões, de milhões… Recordo-me, amiúde, nos meus dias, dos vultos desse recanto, até porque também minha tia, que já passou dos 90, pertence ao grupo. E penso: «Se eu não sei bem o que é isso de milhões, que ideia é que eles farão, diante do pratinho de sopa?».