Progresso sem desumanizar

Ana Cruz
A sabedoria popular já dizia “Depressa e bem, há pouco quem” com o retrato puro de que para ter qualidade no serviço prestado tem que existir calma e organização (pensamento organizado). Tudo isto requer adaptação à novidade que a evolução\ progresso tem conduzido ao quotidiano. Mas para existir adaptação é imperioso gerir a resistência à mudança, tão típica do ser humano. Fornecer estabilidade psicológica através da formação profissional para atualizar o uso de novas tecnologias, constituí um meio de motivação profissional. E fornecer divulgação à população acerca dos benefícios das novas tecnologias é uma ferramenta para evitar o conflito associado à exigência de um atendimento célere desconhecendo o motivo da demora.
De fato, a resma de papelada manuscrita em consultório médico era apanágio de uma boa consulta. Escrever num papel timbrado ou carimbado era tão corriqueiro que o profissional de saúde realizava de forma natural conseguindo ouvir o discurso do utente em simultâneo, e muitas vezes durante a redação alterava a suspeita de diagnóstico mediante os sintomas verbalizados. A realidade é que qualquer profissional na área da saúde tinha tempo para realizar um exame físico e questionar o utente, porque estava despreocupado em relação à prescrição ou requisições de exames. O avanço científico quer na farmacologia quer nos meios complementares de diagnóstico era tão embrionário, que o número de medicamentos disponíveis era reduzido a fórmulas manipuladas pelo farmacêutico, e a realização de exames era apenas destinados a situações de emergência. E também existia a questão financeira dos cuidados de saúde. Não me canso de referir (em artigos anteriores já relatei esta situação!), que a economia das famílias no Estado Novo era parca, e gastar dinheiro em medicamentos ou exames desnecessários era um dilema constante nos profissionais de saúde, especialmente os médicos. Saber que para adquirir um medicamento significava um sacrifício para toda a família, pesava muito no ato da prescrição!
O salto tecnológico foi enorme e a adaptação foi carente em formação profissional a nível de comunicação de rede (computadores) e a exigência dos gestores de Saúde em melhorar resultados (indicadores) colide com este “muro”, que é a escassez de educar os grupos profissionais na introdução aos computadores! Impor a utilização de um computador na prática diária de qualquer trabalhador acarreta sempre uma formação. Mas o que acontece quando nada é explanado, porque pressupõe-se que toda gente já tem um computador em casa? Como colocar uma visão positiva ao profissional que durante 20 anos de carreira a escrever em papel, deve agora aderir sem questionar o uso de um objeto que desconhece? Bem… A saída mais airosa no final do séc. XX, era a reforma da carreira profissional para não sujeitar-se à adaptação. Para a psicologia contemporânea, este mecanismo de defesa é denominado por fuga, para o comum mortal significa medo de falhar! Assim terminava a minha carreira contributiva sem abdicar da minha resistência às novas tecnologias, e delegava isso para os mais novos! Mas muitos permaneceram no seu local de trabalho, sem qualquer apoio na introdução ao novo meio de comunicar e enervam-se com a complexidade de teclas e senhas que têm de saber para utilizarem o computador. A verdade é que o olhar passa a estar assente no monitor e como desconheço como devo proceder tenho de me concentrar no computador em vez de olhar e escutar o utente. Este por sua vez, nem fala devido à irritação que o profissional demonstra (comunicar não é só palavras, uma testa franzida inibe o inicio de uma conversação!). O mesmo profissional que tinha sempre tolerância em escutar o utente e realizar uma parte importantíssima da consulta que é a entrevista (Anamnese), agora foca-se em encontrar os milhentos códigos que simplificam a sua prática. E antes do utente falar já tem as análises, as ecografias a serem impressas ou enviadas em SMS (outra novidade do SNS, mas pouco divulgada ou adaptada para a população em geral). Quando chega a vez de questionar os sintomas do utente, o tom de voz já desespera de antecipação por ter de procurar mais códigos no computador para investigar os sintomas do utente. Porque numa história clínica há sempre a versão subjetiva (a sensação que o utente refere) e a versão objetiva (sinais medidos pelo profissional de saúde\ Exame físico). O que significa que quando falha a parte subjetiva, o profissional pode realizar um plano ou diagnóstico incorreto, deturpando o motivo do utente recorrer ao seu serviço. Isto leva à famosa “Medicina Defensiva”, que é prescrever múltiplos exames\ medicamentos sem queixas associadas para prevenir conflitos na relação com utente por falta de exames. Porque faz-se reclamações por falta de exames, mas nunca por exames desnecessários e com efeitos secundários desagradáveis.
É a cultura do “mais é melhor”, desvalorizando que somos seres únicos e que não devemos generalizar. Lá porque a vizinha fez 3 Rx, 2 colonoscopias e 5 análises clínicas num ano, não significa que tem mais saúde do que eu! Aliás invejar a quantidade de exames e medicamentos que os outros têm, demonstra a desvalorização que a pessoa faz da sua saúde. Bem que a vizinha não queria passar por tantos exames….