Liberdade de ofender, não é poder!

Ana Cruz
Cada vez mais é difícil discernir os valores que compõem uma sociedade democrática. Tendo por base a participação do povo na governação, sendo originária pelos gregos (Demoskratía Demos – Povo/ Distrito e Kratos- Poder/Dominio), existe uma diversidade de opiniões que é suportada na liberdade de expressão.
Mas afinal o que motivou a revolução para destituir o regime do Estado Novo, também conhecido por Salazarista? Para além de defender a igualdade de direitos entre as classes sociais, o fundamento nunca foi bem esclarecido para as gerações nascidas pós-revolução. Na verdade o descontentamento da transição do regime de ditadura para o Estado democrático que hoje vivemos sempre foi muito conturbado. Todos valorizam as transformações sociais: o terminar de uma guerra colonial associada a um número enorme de mortes, quase todos maioritariamente da classe pouco instruída; o direito de votar de forma voluntária na ideologia que apoia; ter acesso à saúde, educação e assistência social foram direitos inéditos perante décadas de inexistência a cuidados de saúde universal e quem tinha acesso à educação tinha o privilégio de ter uma família com posses económicas ou um padrinho\ madrinha generoso(a) e por fim a liberdade de ter opinião sem correr risco de ser torturado.
Eu nasci em 1977, caso não tivesse existido esta revolução, seria uma ignorante académica com pouca probabilidade de poder escrever ou ler um artigo de opinião. Provavelmente não conseguiria frequentar a escolaridade obrigatória e limitava-me a aceitar um salário pouco digno de alguém que achava que estaria a ser magnânimo por me facultar um emprego. Provavelmente valorizava o pouco que tinha e sustentava a ideia que não merecia mais. Porque “… já é sorte ter um emprego!” ou “.. ele(a) tem cunhas ou pertence aquele grupo (partido\ religioso\ social) por isso tem um emprego”
Curioso? Esta frase já é ouvida nos dias democráticos que vivemos! Por isso oiço, com pesar, histórias da nova geração que demonstram o quanto nós perdemos com a democracia de agora. O mérito no trabalho e o brio na realização do mesmo é algo que os mais velhos relatam. O respeito era mútuo, e a responsabilidade de ocupar um lugar de poder e autoridade era um exemplo a guardar e não a desprezar. Todos nós fomos crianças, adolescentes e jovens adultos. Todos tivemos contacto com o dever de respeitar os que têm mais de experiência de vida, sendo eles o exemplo a seguir. Relato aqui uma história que me entristece, mas que teve e terá um final melhor que o esperado.
Cuidar é uma vocação que poucos têm, e quando uma jovem decide ser cuidadora\ médica\ enfermeira confia quem está a orientar o seu percurso. Logo considero traumático que um tutor\ orientador ridicularize e humilhe um futuro cuidador (a). A autocrítica é uma constante da insegurança, e é normal errar quando se está a aprender. Normal seria que quem tem a autoridade\ competência de liderar e orientar deveria ser empático e ser tolerante perante as primeiras quedas no início de uma futura carreira. Hoje é cada vez mais frequente, a pessoas sentirem confortadas com a desgraça alheia, por isso não me espantou quando uma jovem que frequenta um curso profissional de técnico de saúde ter decidido desistir de manter a sua vocação. Numa apresentação é sempre difícil gerir o nervosismo de estarmos sozinhos a apresentar perante uma plateia de 5 ou mais pessoas, adicionando o fato de todos estarem a escarnece-la, a confusão e o bloqueio é o resultado natural perante tal atitude visionada. Não contentes com o desassossego da jovem, ainda incitaram às lágrimas, como forma de demonstrar que era válido ser humilhada em público. Mas o melhor era que, o fato de desconhecerem o advérbio SIC (sic erat scriptum – “assim estava escrito”) que a jovem tão sabiamente colocou nas citações que apresentou, gerou uma troça ignorante por parte dos orientadores\ profissionais. A ideia que ainda se transmite durante o processo de educar, é que as pessoas que possuem competências profissionais são respeitosas e humildes, e não utilizam a hierarquia como ferramenta de demonstrar a sua superioridade. Portanto imagine-se a confusão de um adolescente e\ou jovem que é ridicularizado pelo tutor\professor! Adicione a este comportamento, falta de conhecimento geral e civismo.
Assim SIC, foi motivo de chacota por quem devia de saber o seu significado. Confundiram um canal de televisão com o advérbio. Pessoas que, supostamente, realizaram trabalhos académicos que continham citações. Pessoas que deviam ter uma formação pessoal diferente! Por causa disto, a jovem decidiu desistir do curso. Esteve um tempo a questionar acerca da sua vocação. Passou por vários especialistas da área mental e de psicologia, para vencer os medos que lhe foram incutidos. Vencida? Não! A verdade é que passou a dar valor ao seu dia ao dia! Passou a não necessitar da aceitação dos outros para se sentir segura. Regressou novamente para o curso que desistira, mais forte e mais rica como pessoa. Sabia que a injúria e a resistência à mudança passariam a ser algo a rever, naqueles que seriam os seus orientadores.
Esta é a imagem que passamos para a nova geração: revoltados e frustrados, descarregamos na juventude como uma tradição para a sua integração à vida adulta. Não damos ferramentas para ultrapassar as agressões verbais, que são sujeitas. Ficamos indiferentes ao desabar destes jovens que se isolam perante o infortúnio de serem discriminados. Esquecemos que eles serão o nosso futuro, e que estão perdidos perante tanta incoerência de emoções a que estão expostos.
Fico feliz por ver que grande parte consegue superar esta confusão e tornarem-se mais maduros que muitos adultos que deviam de ser os seus guias.