Autonomia do fazer

Ana Cruz
Um tema que é sempre repetitivo na vida profissional é a tomada de decisão e autonomia. Do ponto de vista etimológico autonomia é uma junção de auto (si mesmo) com nomos (lei), cujo sentido origina “aquele que estabelece as próprias leis”. E a tomada de decisão deriva da escolha de uma opção entre várias alternativas.
Quando se trabalha em equipa, supostamente, existe uma definição do papel profissional que cada um desempenha. Em Portugal, quase todas as profissões têm as suas competências expressas em Diário da Republica como forma de validar a profissão de forma ética e legal. E supostamente, qualquer elemento que represente uma profissão e que colabore com outras formando uma equipa, deve respeitar os papéis profissionais dos outros elementos.
Mas, e se este respeito trouxer insegurança no desempenho profissional? Diariamente, vejo a falta de reconhecimento do papel do enfermeiro na equipa multidisciplinar. De fato, a ideia do enfermeiro-tarefeiro ou auxiliar do médico ainda é recorrente, especialmente no meio interior onde ainda se refugiam os tradicionais velhos do Restelo. A ideia de uma profissão ser inferior a outra é pouco dignificante, mas reduzir o individuo que a exerce a esse rótulo, é uma ideia provinciana que limita Portugal. Considerar que um talhante é superior a um padeiro, demonstra uma ignorância da relevância que as duas profissões representam no sector de produção alimentar! Dizer que um manda no outro, é de tal forma caricato, porque não consigo ver o talhante a mandar o padeiro a amassar 200 pães só porque cortou 200 bifanas! (Que me perdoem os padeiros e talhantes por utilizar esta metáfora!) De fato os dois complementam-se!
Felizmente os tempos evoluem e alguns estereótipos estão a decair. De fato já existe uma faculdade de Medicina que tem um estágio de observação de duas semanas para os futuros médicos acompanharem as enfermeiras nas suas atividades de um internamento. O que para muitos seria um desmérito, significa que finalmente reconhecem que os médicos não devem ser meros prescritores de bata aberta e estetoscópio nos ombros. Devem saber qual o resultado das suas decisões aplicadas na prática. Observar que os doentes\utentes têm dificuldades em aceitar ordens médicas e revoltam-se com as enfermeiras (pedir colheitas de sangue é fácil, “picar” 3 vezes a mesma pessoa num dia não dá alegria! Pedir pausa alimentar uma pessoa e não avaliar de forma diária dá um olhar de raiva ao esfomeado e respostas indispostas às enfermeiras e auxiliares! Desvalorizar as dores de uma pessoa dá impropérios certos a quem a interpele de boa vontade).
De fato é compreensível esta confusão inerente à profissão e á constante revindicação dos direitos do profissional de enfermagem. Muitas vezes julgados por candidatos frustrados de Medicina ou com síndrome de inferioridade em relação a demais profissionais de saúde os enfermeiros nunca souberam criar limites no seu exercício e geram constantes dificuldades em definir a sua identidade social. Considerar o cuidar como algo responsável e não dar primazia apenas ao tratamento, porque os cuidados sempre devem estar presentes na atividade diária das pessoas. Porque realizar exames e tratamentos sem cuidados, torna-se um ciclo vicioso. Para além de ser mais seguro seguir prescrições para tratar do que avaliar, planear e executar para prevenir tratamentos. (Nem a indústria farmacêutica iria achar muita piada a diminuição de lucros devido aos bons resultados de saúde promovidos pelos enfermeiros!). E existe a necessidade de valorização realizando técnicas que são adstritas a outros técnicos de saúde, ficando sempre à sombra desses profissionais e perdendo a autonomia. E nem os familiares e comunidade onde estão inseridos reconhecem o “esforço” que estes enfermeiros submetem ao estar a dar prioridade aos exames e tratamentos, invés ao processo do cuidar e prevenir. Porque ninguém reconhece que ter um enfermeiro que acompanhe uma pessoa nas atividade de vida diária, desde higiene até a preparação de medicação para além de uma multiplicidade de necessidades que são consideradas normais, são cuidados que evitam idas desnecessárias às urgências e utilização de recursos materiais associados a situações agudas. Sempre em articulação com a equipa multidisciplinar, o enfermeiro deveria ser o elo de ligação.
Estou grata por ser enfermeira, mal interpretada por mentalidades que confundem profissão com vocação. Que ainda assumem que a enfermeira apenas tem estatuto associado ao poder do médico que lhe delega tarefas e que por sinal tal comportamento lhe dá prestígio social, como auxiliar do médico.
Tenho coragem em admitir que o caminho é longo, e muitas “pedras” vão ser arremessadas, mas generalizado para as restantes profissões que lutam por ser autónomas, utilizem o saber no fazer, não sejam meros imitadores de técnicas vazias e com pouco apoio de reflexão. Posso não estar presente no dia em que a enfermagem é reconhecida pelo conteúdo que tem, mas tenho consciência que todos os dias utilizo o meu raciocínio para elevar esta nobre profissão!