CONTOS COM MEMÓRIA

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O CHICO DA LABOEIRA (um conto do meu avô)
Nas fraldas da vila de Mangualde resplandecia em fulgor a Quinta da Laboeira, era uma grande extensão de verdes campos onde de manhã até á noite o sol caía em bátegas de cor a arfarem sob um céu onde as estevas se desentranhavam em milhares de flores e a voz do vento se arrastava pela solidão infinita. Num humilde casebre alpendurado numa pequena colina do lado nascente, vivia com a família no silencio falante da paisagem o Francisco da Laboeira. Homem que sempre viveu uma vida de cavador e nunca mais do que isso. Escola não conheceu e falar dela quase não se lembrava. A enxada fixara-o definitivamente á terra. Criou a sua família, compadrios e a sua própria cultura que lhe dava sentido à vida. Levantava-se cedo mal o galo cantava e os rafeiros latiam no silencio dos casebres vizinhos, onde homens e mulheres ainda dormiam. Metia a cabeça fora do postigo e enchia tanto o peito de ar absorvendo o fresco da manhã que parecia querer engolir o mundo. Tomava de seguida um cafézito de cevada que fazia ao borralho no púcaro de barro e todos os santos dias ia acrescentando com uma ou duas colheradas de pó às bôrras. Durante a manhã na hora em que Deus é perfeito em dor e amor saboreava umas sopitas de cavalo cansado ou umas batatitas com uma cebola. E na sagrada refeição do almoço ao meio dia, quando sorria “O Menino”, ao jantar uma alimentícia sopa de unto com pão de centeio e para refasto daquele estômago ainda faminto um naco de carne de porco da barriga quando a havia que acompanhava um feijão vermelho com couve troncha do seu quinteiro e um naco da sua broa caseira provecta dos grãos do milho do seu lameiro fundeiro que no Verão em haste subia para o sol e em raiz faminta se agarrava à terra. Rodava por todos o garrafão do palheto da sua colheita. À tardinha soava finalmente o toque das trindades. Tirava o chapéu e benzia-se.
- Deus seja louvado, Pai – Nosso e Avé – Maria.
Era o final de mais um árduo dia de trabalho. Francisco vinha da lavoura na mágica penumbra da tardinha transportando consigo o assombro de um dia pesado de uma exaustão dolorosa de jorna. Olhos de um negro místico como lascas de pedras faiscantes de uma doçura atribulada com um manso resplendor de madrugada. Corpo hirto, músculos doridos Francisco caminhava com passos lentos por um carreirito apertado, sinuoso, entre altivos pinheiros num nevoeiro pálido de mágoas, densas giestas e tojos rasteiros, altivos e rasteiros ao seu olhar apenas, mas aos olhos do seu espírito uma grande árvore e uma ervinha eram da mesma altura, até à casa onde a mulher e os filhos o esperavam. Circundando-lhe a rotundidade do seu abdómen um cordão enegrecido pelo suor e nele suspensa balançava uma ferrugenta chave de sua casa que lhe prometia uma ceia de descanso. Meio derreado pelo peso de uma enxada que carregava ao ombro tão pesada como a cruz da sua amargurada vida que o presenteou com grossas mãos de rijos calos que eram o seu orgulho e a maneira de testemunhar o amor pela terra de onde nunca quis sair. Trabalhar a terra era o seu destino fatal e as suas mãos calejadas eram a singela homenagem àqueles que como ele sabiam dar vida a um terreno em boiça. Cismava falando baixinho com os seus botões num lamento doloroso de resignação e desespero.
- Meu querido filho!… (e suores frios lhe percorreram a espinha de alto a baixo).
- Essa maldita doença que dia após dia faz murchar a mais bela flor do meu canteiro. (Pequeno, rosto celestial de anjo, cabelo como espigueiro caindo sobre as orelhas em loiros caracóis ondulados, olhos como duas estrelinhas cintilantes, era o seu caçulinha o Rudolfo). E uma lágrima traiçoeira se libertou deslizando com um afago um sulco daquela face tisnada. Chegava Francisco a casa exausto naquele sombrio dia quando já declinava a noite e com a barriga a dar horas mastigou uma bucha, umas aparas de bacalhau cru e do cântaro de barro tirou umas azeitonas curtidas que entre suspiros e ais acompanhou com um naco de broa. Era o melhor aperitivo para beber uma “pinga“. Estava momentaneamente aconchegado aquele raleiro que lhe apertava o estômago contra as costas. Sentado no pátio térreo num banco de uma madeira tosca, improvisado, debaixo de uma secular figueira de figos vindimos, enquanto os filhos à sua volta esgravatavam a terra, esperava a ceia que a mulher cozinhava na lareira. Vivia da alegria de ver aquelas crianças felizes. Sossegava com aquela alegria contagiante que transmitiam aquelas pequeninas almas. Mas o seu menino, a sua alegria, não corria atrás dos irmãos, cansava-se, o seu coraçãozito de menino dócil recusava-se a palpitar naquela carcacita franzina. Na sua mais pura inocência não imaginava que a vida lhe escaparia a todo o momento. Suspiros e preces diáriamente percorriam os ares daquela humilde casa. Durante toda aquela santa tarde Francisco tinha sentido um aperto no coração que não tinha explicação. Até o gurgulhar da fonte de águas cristalinas que embalavam os nenúfares flutuantes com sua “flor da sereia“ lhe havia passado despercebida. E com o corpo esgotado de forças e a alma esgotada de paz sente a chegada da hora fatídica. Dois anjos alados envoltos numa nuvem branca de forma angélica embebidos em luz amanhecente tinham descido à terra na suas asas de silencio e na doçura dos seus extremosos braços envolveram a alma pura e inocente da criança para junto de Deus. Paralisou num silencio profundo, meditativo, não querendo acreditar. O seu menino havia partido com um ar tão sereno e tranquilo como um perfil de anjo. Mas a roda da vida não pára. Francisco todos os dias à mesma hora se senta debaixo da velha figueira. Alheado da noite que desce de mansinho, não dá conta das horas. Os filhos despertam-no daquele estado letárgico, sonho falso que fustiga malvadamente aquele corpo dorido do trabalho.
- Ande pai, é hora da ceia, levante-se, venha…
Vê aquela estrelinha mais brilhante no céu?!… É o nosso menino que se despede de nós e nos deseja uma noite serena de descanso e amor.
O pai olhou-os terna e amorosamente, volta olhar o céu e no silencio da noite, chorou, lágrima que se vestiu de asas e voou como uma lágrima Santa de Maria. E uma estrela cadente, a mais brilhante do firmamento deslizou em direcção à terra e a sua luz entrou pela janela daquela humilde casa. A noite caía serena prometendo-lhe o almejado descanso do corpo e da alma de um pecador que expiava os seus pecados numa vil libertação de suor e sacrifício, proveitos da dignidade do seu trabalho.