MEMÓRIAS

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SERÕES À LAREIRA
Tempos de Inverno bravios que hoje ainda desencadeiam em nós a nostalgia de um saudoso passado e que eu numa humildade de partilha que será comum a tantos de vós caros leitores, aqui benevolamente vos imponho mais uma página ditada pelas largas palpitações da vida memoriando a nossa casa que é o santuário da nossa essência. Imaginemo-nos frente à nossa lareira funda de boca larga, qual boca de gigante sem dentes, enegrecida por uma espessa camada de fuligem como densa película de um coração empedernido. Lá fora sentíamos cair a chuva em grossas bátegas, o céu mais parecia uma canastra rota. Estávamos aconchegados á lareira com um lume crepitante, ao fulgor de umas labaredas alimentadas por grossas cepas de árvores, arrebanhadas no monte pela veleidade do serrote e a força do machado. Sentada num “mocho“ nossa mãe cozinhava um caldito de farinha numa panela de ferro, negra do fumo, como aquela noite escura, sem luz nas ruas. Embalados pelo terno calor daquele lume flamejante, enquanto nossos sonhos aqueciam, acicatávamos-lhe aquele espírito em leiva terrosa que nunca levara húmus nem semente, impregnado de uma virgindade espiritual, recitando-lhe pequenas “estórias”, lendas de ilusão de príncipes e princesas encantadas, fadas e duendes que transformavam objectos e pessoas, que lhe faziam transbordar de emoções a sua santa inocência. Envolviamo-la numa nuvem de sonho vivenciava mundos que nunca tinha sonhado e verdadinha jamais conseguiria viver. Era necessário reverter a ilusão para a realidade, avivar a chama que nos aquecia manter o lume com labareda alta pois em breve chegaria o nosso pai que trabalhava na vila ou no campo encharcado até aos ossos. Homem firme e duro, cepa rija que desafiava a intempérie que bradava no exterior. Assava-se no braziol uma sardinhita “escochada“ , suculenta e saborosa. Em cima de umas “trempes“ já a bacia de barro esbeicelada nas bordas e decorada com umas ramagens de oliveira tendo como fundo a Srª do Castelo, transbordava de um cremoso caldo de farinha. Irmanados no amor e no apego sentimental que sempre nos amarra ao nosso ninho natal, comíamos na intimidade das berças, no silencio da luz de um candeeiro a petróleo e da iluminação das labaredas que sombreavam tremelejando como um cortejo de fantasmas na penumbra da cozinha, na “cantareira“ dos pratos, copos e tachos, donde pendiam grossos ramalhetes de ervas medicinais, secas, colhidas no campo e até na berma do caminho para chás e curas de maleitas: o ipiricão, a erva de S. Roberto, a barba de milho, as malvas, a salva, a cidreira entre muitas outras. Terminada a frugal refeição da ceia e enquanto nosso pai ia à taberna desabafar das mágoas, pôr a conversa em dia entre dois copitos de vinho, após um quotidiano de labuta. Nossa mãe resguardava-se da noite fria em frente da lareira, intermeando os remendos da roupa com a cosedura das meias. Lá fora a noite era como breu e a chuva teimava em romper o céu. Não havia luz. E já numa lassidão comprometedora se nos colavam os olhos como ímanes de poderoso magnetismo. Transcendíamo-nos em esforço para ainda ouvir uma reza ao “mau olhado“ que deveria ser feita durante sete dias consecutivos , e tanto se aplicava a pessoas como animais :
Esse ar que te deu, quem to daria que não fosse por maldade? Que não fosse por vingança? Talho-te por Deus e pela Virgem Maria, em que porás toda a esperança.
E pela s três pessoas da Santíssima Trindade, assim como elas querem e podem, ao toque do nosso sino, pelo Seu poder Divino, de onde este mal veio, depressa lá retorne. (Rezávamos três pais nossos e três Avé – Marias).
A noite está densa e ouvem-se os gemidos doridos do vento. Recolhemos ao leito, uma cama quentinha e fofa com um colchão de palha centeia estaladiça, lençóis de flanela e cobertores de estopa. O sono é paz, é aconchego é descanso. Recomendávamo-nos rezando uma oração ao nosso anjo da Guarda:
Anjo da Guarda minha companhia, guardai minha alma de noite e de dia. (Pai nosso e Avé- Maria) .
Com Deus me deito com Deus me levanto, com a graça do Filho e do Divino Espírito Santo
Dormíamos no sossego da corte celestial.
E estamos nós agora a pensar, voando nas asas do tempo: Como é admirável a complexidade evolutiva do ser humano!!!…
Hoje já nada é assim….