A REAL FÁBRICA DO GELO

juiz
Antes dos finais do século XIX, até ser inventado o frigorífico, não era fácil encontrar um modo de refrescar as bebidas na época do Verão. Só a natureza podia produzir o gelo necessário para o efeito. Para o conseguir, foi construída, na Serra de Montejunto (no lugar da atual freguesia e concelho do Cadaval, distrito de Lisboa) a Real Fábrica do Gelo, onde se formavam blocos de gelo que abasteceram, durante mais de 120 anos, a Corte e os cafés mais “chiques” de Lisboa. O hábito do consumo de bebidas frescas foi introduzido em Portugal no início do século XVII. Quando Filipe III de Espanha visitou Lisboa, em 1619, foram envidados todos os esforços para que não faltasse a neve na mesa do rei. Nessa altura o gelo vinha da serra do Coentral, situada no extremo sul da serra da Estrela e da serra da Lousã.
A construção da Real Fábrica do Gelo teve início em 1741 e demorou cerca de seis anos, tendo ficado a dever-se à iniciativa de três homens de nacionalidades diferentes: um espanhol, um italiano e um francês. O custo da obra importou numa verba que oscilou entre 40 e 45 mil cruzados, um valor exorbitante para a época. A unidade constava de dois setores, sendo um de produção e outro de armazenamento. Esta parte, apesar de ser em pedra (com 10 metros de profundidade e 7 metros de largura), dispunha de uma grelha em madeira assente num conjunto de pedras salientes, por forma a permitir o escoamento da água do gelo que se derretia para não ficar em contacto com o bloco, sendo drenada para o exterior. Isto constituía já um avanço técnico para a época.
A água da chuva era conduzida para os 44 tanques de congelação, com recurso a um sistema de nora movida pela força de animais. A água distribuía-se por gigantescas “couvettes”, a céu aberto, aguardando que o frio da noite as transformasse em gelo. Quando tal acontecia, o guarda descia à próxima aldeia de Pragança e, munido de uma corneta, chamava os habitantes da aldeia para a tarefa seguinte que consistia em tirar os blocos dos tanques e transportá-los às costas para os silos antes do sol nascer. Os “neveiros” dormiam em suas casas atentos a este chamamento. Mal escutavam o som da corneta, apressavam-se a subir a pé até ao cimo da serra, sabendo que só os primeiros conseguiam trabalho. Era a oportunidade de ganhar algum dinheiro, levando a cabo uma tarefa muito árdua, em que, mal vestidos e mal calçados, tinham de suportar um frio muito intenso. A época deste trabalho situava-se geralmente entre Outubro e Fevereiro.
Nos silos os blocos de gelo eram acondicionados com palha e serapilheira e aí permaneciam até Junho, altura em que eram transportados para Lisboa. O transporte dos blocos fazia-se no dorso de burros, descendo as veredas que serpenteavam a montanha. Vencido o desnível da serra, eram transportados em carroças ou carros de bois que os faziam seguir rapidamente até à Vala do Carregado, sendo depois transferidos para os denominados “barcos de neve” que, pelo Tejo, os levavam até Lisboa. Na capital eram levados para a “Casa da Neve”, no Terreiro do Paço, que mais tarde veio a ser o atual café Martinho da Arcada, e também para o “Café Gelo”, que ainda hoje existe, no Rossio.
O gelo era não só utilizado para refrescar o vinho branco ou o champanhe, mas também para fazer sorvetes. Estes eram servidos, não como sobremesa, mas entre o prato de peixe e o de carne, para cortar o sabor.
A Real Fábrica do Gelo serviu a Corte dos monarcas D. João V e D. José. Funcionou até à invenção do frigorífico. Depois ficou totalmente esquecida durante quase um século. O mato tomou conta do local, tendo-a escondido a ponto de já “ninguém” se lembrar da sua existência. Porém, um professor de História na Escola Secundária do Cadaval, lembrou aos alunos que a mesma havia realmente existido. Isto aguçou a curiosidade de uns tantos alunos que, tendo interesse em encontrar o local combinaram ir procurá-lo. A vegetação que se tinha desenvolvido à sua volta, impediu-os de entrar na Fábrica. O grupo de jovens, com idades compreendidas entre os 15 e os 16 anos, não desistiu de a devolver ao conhecimento das pessoas atuais. A Câmara Municipal do Cadaval, com a colaboração do Instituto de Gestão do Património Arquitetónico e Arqueológico (IGESPAR), compreenderam a sua importância e deram início à sua recuperação, musealização e classificação. Em 1997 foi então classificada como Monumento Nacional, tendo sido reinaugurada em 27 de Março de 2011.