Ucrânia e o nosso futuro coletivo


Decorridos que são já 3 meses do início da invasão russa da Ucrânia, começa a tornar-se evidente que estamos perante uma guerra cujo fim não estará para breve. A tenacidade, coragem e espírito de sacrifício dos militares ucranianos, emanados do patriotismo heroico do povo ucraniano e inspirados pela surpreendente coragem do seu Presidente Zelensky, conseguiu travar a marcha, julgada até aí imparável, da poderosa máquina de guerra russa.

Putin e o seu Estado-Maior viram gorada a sua tentativa de reeditar o sucesso da blitzkrieg nazi, que então entre setembro de 1939 e o verão de 1941, tinha possibilitado a Hitler e ao seu Estado-Maior dominarem todo o espaço entre o Canal da Mancha e as margens do Volga. Uma vez mais, a História relembrará aos mais incautos que a cadeia logística e de abastecimento é tão ou mais importante que a velocidade e número de blindados, e que a defesa da liberdade conquistada por uma nação que se autodetermina é o valor mais decisivo na definição da identidade desse povo.
Independentemente da duração e do desenlace da Guerra na Ucrânia, os seus efeitos têm já impacto em todo o mundo. As alterações nas relações internacionais serão profundas, com o aprofundar da cooperação entre as democracias liberais do Ocidente e o cada vez mais provável processo de abrandamento do processo de globalização. De uma forma como não acontecia deste a queda do Muro de Berlim e da implosão da União Soviética, o bloco ocidental ressurgirá como contraponto à ameaça dos totalitarismos vigentes em várias latitudes. Infelizmente, vemos já o incremento das estratégias de defesa e investimento militar, forçadas pela ação irracional de Putin. A eminente adesão da Finlândia e da Suécia à NATO é disso o melhor exemplo.
A defesa dos Direitos Humanos, da soberania dos Estados e dos mais elementares princípios democráticos, agora que todos percebemos quão frágeis são e como podem ser postos em causa por uma qualquer déspota militarmente empoderado, condicionarão o processo de globalização vigente que os tinha menorizado em detrimento dos enormes proveitos económicos e financeiros.
É já claro que o medo condicionará as opções de médio prazo dos Estados Ocidentais. Mais despesas e investimento em Defesa, mesmo que partilhada e por isso mais eficaz e eficiente face a ameaças externas, quer no âmbito nacional quer no âmbito NATO, forçarão inevitavelmente a menos investimento em políticas sociais, uma vez que estas são o grosso de qualquer orçamento de todas as democracias liberais.
O comércio mundial verá o ressurgimento da importância do Espaço do Atlântico, numa reinterpretação do velhinho comércio triangular entre as Américas, África e Europa, desta vez mais equilibrado e que abrandará o inevitável crescente domínio do Indo-Pacífico. À boleia da necessidade da diversificação dos fornecedores de energia, que a substituição do gás e petróleo russo obrigará, surgirão novas oportunidades de negócio entre União Europeia e Estados Unidos, e países como Brasil, Venezuela, Angola e Nigéria.
A política de Transição Energética, assente na descarbonização, será acelerada e contará com o empenho sem precedentes da Alemanha enquanto motor industrial de uma Europa ainda muito dependente dos combustíveis fósseis. Os gigantescos investimentos necessários para a alcançar obrigarão os estados europeus a priorizar políticas de Eficiência Energética, ganhando esta, finalmente, a importância que lhe é devida quer no contexto de estratégia económica, quer no que concerne ao combate às alterações climáticas.

Todos estes desafios, além de decisões políticas e estratégias comuns europeias, necessitam de suporte financeiro, que advém obviamente de incremento da capacidade económica. A re-industrialização europeia, e consequentemente portuguesa, é indispensável para solucionar/minorar a quebra das cadeias logísticas que, quer a pandemia de COVID 19, quer a guerra da Ucrânia vieram expor. Somente assim poderemos fixar as mais-valias produtivas na União Europeia, ao invés de continuar a canaliza-las para a Ásia. No entanto, a viabilidade da opção de re-industrialização europeia depende de garantir capacidade produtiva a preço competitivo face aos competidores asiáticos, de nível de serviço elevado sem interrupções e tendo por condição a manutenção do bem-estar social da força de trabalho. Ora a conjunção destas condições, naturalmente evidencia a necessidade de acelerar o processo de robotização, automação e transição digital europeia. Apenas com empresas altamente eficazes do ponto de vista da gestão dos tempos, empenhadas em acrescentar valor em produtos tecnologicamente avançados e em revolucionar a produção de produtos tradicionais, por forma a poder ser competitiva a sua produção na União Europeia, poderemos vencer este complexo desafio.
A defesa dos valores europeus de democracia, auto determinação, bem-estar social e ambiental depende inequivocamente de acelerar a Transição Energética e Ambiental ou seja de uma mudança acelerada e inequívoca para uma Nova Economia, menos dependente de combustíveis fósseis e com menor pegada ecológica. Apenas ela fornecerá os meios financeiros para suportar a batalha pela defesa dos direitos humanos na Ucrânia e a batalha contra as alterações climática. Essas batalhas não serão ganhas sem alguma dor, sem opções momentaneamente dolorosas. Cabe desde já às lideranças políticas europeias saber trilhar esse novo caminho. Caberá aos soberanos, os povos livres da Europa escolher, defender e moldar o sucesso dessas opções.
Defender a Ucrânia e progressivamente integrá-la no seio da Europa além de um dever moral é uma necessidade estratégica para a sobrevivência do projeto europeu. Tal como o Estado Providência dos anos 50 e 60 surgiu da abominável destruição causada pela demencial violência nazi, também a selvática invasão russa da Ucrânia deve servir de causa necessária e suficiente para a mudança de paradigma no Ocidente. Aliás foi sempre assim na longa História da conquista do futuro pelo Ocidente. A nossa capacidade de defesa e criação progressiva de direitos nasceu sempre de sangrentas opções de oposição à tirania e requereu sempre sacrifício coletivo. Das Termópilas às Guerras Púnicas da República Romana, das Guerras Religiosas da Reforma do séc XVII, à Revolução Francesa, da luta contra todos os fascismos e totalitarismos nas praias da Normandia ou nas ruas divididas de Berlim ou ocupadas de Budapeste e Praga, foi sempre essa uma marca indelével.
A mudança que permite sonhar com um futuro melhor para as gerações que nos sucedem requer sempre opções difíceis e sacrifícios temporários da geração atual. É deste modo que se cultiva a identidade civilizacional e se escolhe entre a barbárie e a decência.