O Combate à Pobreza

Uma Voz contra a Pobreza em Portugal
Monsenhor Agostinho Jardim Moreira, é muito mais que Pároco e Reitor de São Bento da Vitória (Zona Histórica do Porto), já que é o Presidente da Rede Europeia Anti-Pobreza em Portugal.
A sua voz clama ao longo das últimas décadas no combate á Pobreza e às Desigualdades.
Homem de grande proximidade, simples, de diálogo, amável e generoso é uma voz activa e ouvida na Intervenção Social.
O Jornal Renascimento ouviu Monsenhor Jardim Moreira sobre a actual conjuntura em Portugal e a Obra que está a desenvolver para minorar esta difícil situação.

1- Agravou-se com a Pandemia e com a Guerra a Pobreza em Portugal.
A Rede Europeia Contra a Pobreza indica 2030 para ser erradicada. É uma possibilidade?
O momento histórico que vivemos é muito desafiante e incerto. Aos problemas estruturais do país que todos já conhecíamos somam-se agora outros problemas que decorrem da conjuntura internacional e que já estão a ter e terão no futuro um impacto muito significativo no bem-estar e nas condições de vida dos portugueses e portuguesas. Refiro-me, em concreto ao contexto de crise económica e social resultante da pandemia de COVID-19, ao qual se veio juntar a guerra da Rússia com a Ucrânia, que recentemente eclodiu no contexto europeu e que ameaça a Europa e o Mundo, bem como as suas múltiplas implicações económicas, sociais, humanitárias, geopolíticas, energéticas, comerciais, ambientais e tecnológicas.
O agravamento da pobreza em Portugal com esta pandemia foi forte, sendo ainda mais preocupante o facto do maior aumento ter ocorrido nos limiares de pobreza mais baixos. No limiar mais baixo de risco de pobreza (para a população com um rendimento abaixo de 40% do rendimento mediano), o aumento desta taxa foi de 29% face a 2019. Em 2020, 7.5% da população estava nesse nível de precariedade económica mais extrema.
Note-se também que o maior aumento no risco de pobreza ocorreu entre a população empregada, ou seja, uma população que não perdeu o seu emprego ou não fechou a sua atividade profissional durante a pandemia, mas que perdeu rendimentos. Em 2020, 11.2% das pessoas empregadas estavam em risco de pobreza. Contudo, o aumento do risco de pobreza foi também muito forte entre os reformados e os desempregados e são os desempregados os que permanecem como o grupo mais vulnerável a pobreza: 46.5% dos desempregados estão em risco de pobreza, mais 14% do que em 2019.
Ao olharmos para os grupos mais vulneráveis a pobreza (monetária), continuam a sobressair a pobreza infantil (20.4%) e a pobreza junto da população sénior (20.1%), o risco de pobreza nas famílias monoparentais (30.2%), das famílias com dois adultos e três ou mais crianças (29.4%) e dos idosos que vivem sozinhos (28.1%), juntamente com os desempregados e os outros inativos (30.8%).
A pandemia trouxe igualmente um agravamento das desigualdades sociais. Temos de recuar a 2016 para encontrarmos um retrato de Portugal com níveis semelhantes ou superiores de desigualdade. Todos os indicadores de desigualdade apontam para um importante aumento das desigualdades e este aumento é ainda maior quando a comparação é feita entre a população com maiores rendimentos em Portugal e a população com menores rendimentos. Temos 10% da população mais rica com um rendimento 9.8 vezes superior aos 10% mais pobres.
Por isso, é absolutamente que seja dada elevada prioridade ao combate à pobreza e às desigualdades em Portugal.

2- Para que isso aconteça que estruturas são necessárias criar?
Portugal viu recentemente aprovada em Conselho de Ministros, a Estratégia Nacional de Combate à Pobreza 2021-2030 que visa ser um instrumento de política pública, com um conjunto de ações coerentes e articuladas, que permitam reduzir de forma expressiva a incidência da pobreza. A aprovação deste importante diploma legislativo representa, certa forma, uma conquista da EAPN Portugal, pois desde há vários anos que temos vindo a exigir a implementação de uma Estratégia desta natureza e inclusivamente criamos um grupo de trabalho que, em 2015 editou uma publicação denominada “Erradicar a Pobreza, compromisso para uma estratégia Nacional (2015). Para este trabalho conjunto muito contribuiu o Professor Bruto da Costa e a Professora Manuela Silva, entre muitas outras personalidades ligadas à causa da luta contra a pobreza em Portugal. O legado que nos deixaram não será esquecido e esperamos que possa agora ser concretizado da melhor forma possível. Por isso estamos muito gratos pela concretização desta nossa ambição e temos esperança de que este possa ser o momento de concretização de um modelo de intervenção capaz de atender às diferentes necessidades do ser humano. Importa que seja uma Estratégia capaz de articular as diferentes áreas, não devendo ser da responsabilidade de um único Ministério.
O diálogo da Estratégia com outros instrumentos de política pública é relevante, por isso é fundamental criar sinergias com as várias Estratégias em curso e outras que estão para ser aprovadas como a Estratégia Nacional de Longo Prazo para o combate à pobreza energética e a Estratégia para a habitação. A Estratégia nacional de combate à pobreza deve ser um contributo para a proteção dos cidadãos/ãs mais vulneráveis nas transições verde e digital em curso. Isso implica que a Estratégia nacional seja orientadora de outras estratégias, como a Estratégia Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional que está para ser definida, garantindo um equilíbrio entre as áreas da saúde, ambiente e social.
Por outro lado, tal como tivemos oportunidade de nos pronunciar em sede de consulta pública, o primeiro passo para garantir o sucesso de qualquer Estratégia é que esta seja clara, objetiva e capaz de designar os seus responsáveis diretos, sob pena de garantirmos uma declaração de intenções que não surtirá o efeito desejado em 2030. Para isso, é fundamental assentar a Estratégia num Plano de ação concreto que nos permita perceber como será operacionalizada (definição de metas), monitorizado cada um dos objetivos (definição de indicadores) e respetivos resultados.

3- Que mudanças de mentalidade, que posturas políticas, são necessárias?
Muitas vezes, compreender a pobreza revela-se um tanto difícil, infelizmente, ainda está muito interiorizada e generalizada a ideia de que a luta contra a pobreza se faz pela via do assistencialismo. Somos uma das poucas ONGs a trabalhar para alterar e ajustar políticas sociais, atuar nas causas geradoras de pobreza e exclusão, a favor dos mais injustiçados, em nome de uma sociedade livre de pobreza. Trabalhamos áreas tão distintas como a pobreza infantil, minorias étnicas, envelhecimento, entre outras. Apostamos na formação e operamos na área de produção de conhecimento, disseminando-o, contribuindo para o desenvolvimento das políticas sociais.
Entendo que o ser humano deve ser compreendido e cuidado na sua integralidade, tendo em conta a sua inteligência, vontade, liberdade, a sua mente, os seus sentimentos, a sua felicidade, a sua espiritualidade e a sua verdade. O nosso trabalho passa também por esta visão global, ultrapassado o simples assistencialismo, elevando o ser humano, promovendo a sua condição de ser integral e relacional, analisado no seu todo. É este salto que temos de dar. Não basta dar uma casa a uma pessoa carenciada e não lhe dar mais nada! Não podemos dar-lhe cuidados de saúde, se não lhe dermos alimentação. Não é suficiente cuidar apenas de uma só dimensão pois, dessa forma, geram-se graves desequilíbrios; temos de cuidar, simultaneamente e progressivamente, das diferentes dimensões constitutivas, focando-nos em todas as necessidades e capacidades dos indivíduos e não apenas em algumas. Não podemos instrumentalizar e manipular o ser humano, fazer dele apenas um recetor de ordens. Neste momento as pessoas em situação de pobreza, recebem subsídios, diretivas, ordens! Não lhes é, ainda, permitido realizar os seus próprios projetos, cultivar os seus afetos, realizar as suas vidas a nível pessoal. São tratados como sujeitos passivos, impedidos de desenhar o seu futuro. Isto não conta para os conceitos políticos e sociais. E não podemos ignorar, desrespeitar aquilo que de mais pessoal e profundo está no íntimo de cada pessoa. Por isso, urge que a luta contra a pobreza tenha em consideração esta visão humanista e humanizada do ser humano.

4- Ninguém pode ficar de fora deste combate. Quais são os consensos necessários para o enfrentar ?
Acreditamos que a luta contra a pobreza é um processo inacabado, e requer a participação de toda a sociedade, havendo sempre metas a conquistar. A EAPN Portugal ao longo dos últimos 30 anos tem procurado desempenhar um papel crucial não só na denúncia das situações de pobreza no nosso país, mas também na consciencialização social de que a erradicação da pobreza deve constituir um desígnio nacional - porque a pobreza não é um problema exclusivamente dos pobres, mas da sociedade no seu conjunto, no avançar de propostas concretas e fundamentadas para os principais problemas sociais com que a nossa sociedade se confronta.
Entendemos que a pobreza, a desigualdade e o desrespeito pelos direitos humanos no interior das sociedades é eticamente inaceitável. E por isso temos procurado intervir a diferentes níveis:

  • Nível macro – o nível de decisão política
  • Nível meso -dos sistema, organizações e serviços
  • Nível micro -o local, pessoas afetadas e cidadãos em geral.
    Em vários momentos temos defendido que o combate à pobreza requer ações, medidas e políticas e medidas institucionais, as quais por sua vez dependem de mudanças culturais, bem como do quadro de valores dominantes numa sociedade. Temos igualmente defendido que a participação das entidades da sociedade civil e das próprias pessoas que vivencia situações de pobreza é essencial no combate à pobreza. Por isso, precisamos de investir na participação e na qualidade da mesma.

5- Qual o papel das Organizações Sociais neste combate?
As organizações sociais surgiram como forma de dar resposta a questões que estavam sendo negligenciadas pelo governo e são, hoje, uma peça significativa na transformação por um mundo mais igualitário. Estas organizações desempenham um papel fundamental no combate à desigualdade social, já que possuem ferramentas para ajudar as comunidades a ultrapassarem as limitações que as prendem e mantêm em um estado de desvantagem.
A EAPN Portugal está a comemorar os seus 30 anos, e neste já longo percurso, a atenção sobre as Organizações do Terceiro Sector tem sido uma das nossas prioridades. Não só porque a EAPN Portugal é uma rede de Organizações, mas também porque estas Organizações têm um papel fundamental no combate à pobreza e à exclusão social.
O Terceiro Sector tem de se fortalecer e, para tal, tem que se unir e delinear um plano comum de ação, apostar cada vez mais na qualificação dos serviços que presta porque o futuro deste sector passa por envolver outros parceiros como a comunidade e as empresas. Paralelamente é importante congregar esforços para o reconhecimento do papel das organizações sociais, não só no domínio da prestação de serviços e respostas sociais, mas também ao nível da economia do país (uma vez que este sector emprega um vasto número de trabalhadores).
A mudança que se pretende imprimir no domínio da luta contra a pobreza é um processo lento, que exige um forte investimento de recursos humanos e materiais e, acima de tudo, exige a mudança de paradigma. Pensar nas pessoas em todas as fases do processo é essencial para que a mudança seja duradoura.
A luta contra a pobreza combate-se com solidariedade, com proatividade, com inovação e com investimento nas políticas sociais. É este o nosso entendimento e é com estes valores presentes que iremos continuar o nosso trabalho e a nossa missão.