“O maquinismo do relógio existente na torre da capela da Aldeia da Corvaceira, concelho de Mangualde, Distrito de Viseu, apresenta todas as características de ter sido construído por um, ou mais, mestres serralheiros com alguns conhecimentos de relojoaria. Calculamos que tenha sido construído na primeira metade do século XIX, tendo uma idade entre 150 a 200 anos. Os seus construtores basearam-se na escola francesa de relojoaria, pois a roda de escape, não cavilhada, e âncora de corpo inteiro eram as características fundamentais desta técnica de fabrico. Com as invasões francesas estivemos sujeitos a muitas influências. Muitos hábitos e novas técnicas foram introduzidos na nossa sociedade da altura e tudo leva a crer que muitos e novos ensinamentos de forjadores, ferreiros, fundidores e latoeiros, vindos de França, alteraram a forma de trabalhar e o pensamento dos nossos artífices.
Na região das Beiras (Beira AIta, Beira Baixa e Beira Litoral) surgiram vários construtores de “marcadores de tempo” que os colocavam nas torres das Capelas, accionando as horas no sino existente, com o principal objectivo de gerir o tempo que cada agricultor tinha direito a usufruir da água das nascentes. A água era um bem público partilhado por todos os habitantes que possuíam terras de cultivo.
Estes “relógros” estavam acertados (e não certos) pela hora solar o que impedia de transmitir um tempo certo e legal. Anos mais tarde, conseguiu-se conciliar e sincronizar as duas funções: o relógio gerir o tempo da rega e transmitir as horas reais.
As primeiras máquinas conhecidas eram de uma construção muito rudimentar, não havendo lugar a parafusos e porcas de aperto e sustentação, sendo a técnica do encavilhamento a solução para ordenar, de uma forma muito desordenada (mas funcional) as rodas e carretos necessários ao funcionamento do maquinismo. As principais características destes “marcadores de tempo” eram a ausência do movimento combinado dos minutos. Quando existia um mostrador exterior na torre da Capela, ou da lgreja, para indicar as horas e os minutos - como acontece actualmente - só era colocado o ponteiro das horas, pois o funcionamento da desmultiplicação dos minutos era muito trabalhosa de construir e o maquinismo não continha os comandos de sincronismo.
O maquinismo da Corvaceira, agora restaurado, situa-se numa posição intermédia de evolução destes maquinismos artesanais. Apesar de mostrar, exteriormente, o ponteiro das horas e o dos minutos, interiormente, não há nada que mostre a hora exterior, apesar de existir um pequeno mostrador somente com um pequeno ponteiro indicando o movimento do veio que movimenta os minutos.
O bloco de sustentação do movimento e manobra é composto por barramento de aço mole, onde se incrustam os apoios de latão e/ou de bronze, que sustentam os terminais dos veios das rodas. A maior parte das rodas dentadas são de latão cujos dentes foram abertos manualmente.
Este maquinismo mostra que, há muitos anos, sofreu uma grande reparação originando a alteração de algumas peças e rodas mas não prejudicando o seu funcionamento. As “mazelas” são visíveis e visíveis ficarão. É o genuíno e o real que importa, desde que o seu funcionamento assim o seja também.
Apesar de parado há mais de 20 anos e ter sido encontrado caído e em péssimo estado de conservação, após o seu restauro e recuperação, com a idade que tem, é, actualmente, o único maquinismo de relógio de torre a funcionar em Portugal.
Luís Cousinha
23 de setembro de 2028”