NOVOS TEMPOS, VELHOS HABITOS


A tia Rosinha levantou-se cedo e a tactear no lusco-fusco da madrugada, abriu a janela de postigo desenvidraçada que dava para o pateo térreo. Debroçou-se no parapeito e de sobrolho franzido olhou fixamente as sombras que as moreias de centeio projetavam no chão, semelhando gigantes tombados. Ficou alí quieta, calada, fitando as sombras. Um silencio absoluto não dava sinais de vida à imensidão da largura daquele páteo.

  • És tu “Jaquim”?…
  • Sou sim n’ha mãe !..
  • Esteja sossegada na paz de Deus…
    A noite estava fria e húmida, caía um borriço, aquela chuvinha molha-tolos que nos penetra até ao fundo dos ossos.
  • Olha se te “engripas”!…
    Não andes debaixo desse patanheiro filho, agasalha-te…
    Era Joaquim um jovem, no auge dos seus garbosos dezoito anos, olhos melanólicos e faces mal assombradas de penugem.
    Um ruído de arrastar de pés surgiu vindo do lado do barracão de madeira no lado oposto do páteo. Acompanhava-o um arrastado arfar como que carrega a cruz da vida, como coisa que não se vê crescer, mas cresce; surgiu um vulto. Um grande rasgão na camisa mostrava já uma nesga de um ventre luzidio.
    Tirou o chapéu que rolava acanhadamente entre os dedos indicador e polegar e fez uma vénia com a cabeça.
  • Bons dias “n’ha “ senhora… viva, e muita vida e saúde lhe dê Deus…
    Era o Anselmo Carôcho, o velho criado. (Fora enjeitado e não sabendo ler nem escrever, que memórias teria ele no seu coração?!…)
  • Vem com Deus e que Ele te dê um santo dia.
    Já no páteo se ouve um espanejar ruidoso dos galináceos, o ronco dos “bácaros” que bufam por baixo da esburacada porta do corral reclamando a “vienda”, o zurrar do burro e o mugido dos bois que ruminam pachorrentamente implorando por erva viçosa e fresca, voltando para a gente a fisionomia de boa pessoa.
    Era mais um dia quente de Agosto, daqueles em que a vida, egoísta se agarrava à vida e todos os dias renascia.
    Pouco mais seria preciso para se ser feliz.
    O dia fora longo de muito trabalho, apesar do calor.
    Já o sol se recolhia no seu declínio e com ele o Joaquim e o Anselmo Carôcho.
    Ouviu-se um granido escarninho de um corvo que passava ao longe…
  • Uma boas tardes para todos (cumprimentaram em uníssono)
    -- Boas tardes vos dê Deus .
    Sentaram-se à mesa da ceia mais taciturnos que nunca e comeram em silencio.
    Acabada a ceia ergueram-se dos bancos de madeira tosca de um tronco da cerejeira que de uma trovoada de Maio houvera secado e foram-se certificar que todas as portas estavam fechadas.
    -- Vou-me recolher “n’ha mãe”… Boas noites
    -- Boas “nôtes n’ha” senhora ( saudou também o Anselmo )
    -- Boas noites durmam com Deus e com os Anjos…
    E era a tia Rosinha uma pessoa boa, matema, amável e serena que vivia irmanada pela paisagem que a rodeava.
    Cumprimentar as pessoa era um hábito de boa educação nas vilas e aldeias, embora hoje em dia só algumas mantenham o hábito de saudar:
    “esteja com Deus”, “venha com Deus”, “vai com Deus”, “fica com Deus”, “ bom dia viva”. É que nós fomos aí criados e nos habituámos a ouvir.
    O acto de cumprimentar, representa respeito, amizade, carinho e cordialidade.
    Ficam as memórias.