MEMORIAL DE UMA ALDEIA ( 1ª PARTE )

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Todas as manhãs, cedinho, no Verão, quando os raios de sol nos começam a afoguear o rosto, porque a vida começa a desenvolver-se ao nascer do sol, os arados desventram a terra em rudes, cortantes e profundos sulcos. As juntas de bois a escorrer monco das narinas, de canêlos besuntados de estrume, firmavam o cachaço na canga, e rotinavam aquele penoso caminho de vaivém . As ervas daninhas caíam submissas na frescura da leiva . O dia chegava ao fim, cansado também com os rostos tisnados, afogueados pelos raios de sol, os focinhos dos animais fumados no lusco - fusco. Coragem dos homens e dos animais.
- Seja louvado Nosso Senhor Jesus Cristo!!!…
- Para sempre seja louvado e bendito !!…
Eram as palavras de despegar, depois do toque das Trindades que diariamente se ouvia no sino da Igreja, convidando as pessoas ao recolhimento e oração, esperadas desde o amanhecer, irmanadas pelos trabalhadores de enxada que em jornas infindáveis com uma enxada nas mãos , de sol a sol, e á custa da robustez dos seus braços, ganhavam um magro e sofrido sustento, arrancando á pobreza do solo das suas pequenas leiras com a altivez de vida e a humildade de carácter que caracterizou esta raça de homens, cuja plenitude se resumiu na sua grande honradez e honestidade. Enxugavam o suor á manga da camisa arregaçada até ao cotovelo. Homenagem simples, cuja fortuna era corajosamente saberem merecer a vida. E ainda a penumbra da madrugada esboçava uma ténue luz, que era o luar que se escoava entre as frechas das parede e das telhas do curral já o pastor entrava na cabana antes do romper da aurora. Eram três horas matinais de mais um dia que se adivinhava escaldante. Apartam-se os borregos e os cabritos; era a hora da ordenha, a recolha do leite para o fabrico do queijo, por mãos calejadas mas experientes. Era a luta diária pela sobrevivência para alimentar uma família numerosa.
Terminara a azáfama das sementeiras. Já germinam as sementes florescem as árvores. Em breve os terrenos entoarão um hino em louvor da criação. Aproxima-se o Verão, tempo de regas e mais tarde de frutos maduros e suculentos. Desde manhã antes de nascer o sol, no silencio fresco da madrugada, ou á tardinha pelo ténue calor vespertino, sentindo correr lentos e compassados os minutos do tempo , procede-se ás regas. São para quem as vive no seu dia-a-dia, trabalho árduo e canseiras repetidas, momentos únicos e inolvidáveis o acompanhar a par e passo as plantas e frutos no seu crescimento e ao mesmo tempo o seu processo de maturação.
O Verão avança na sua paz calorenta e já lá ao longe na negritude dos campos e no silencio carregado de estrelas brilham os pirilampos, já os grupos de homens e mulheres de ceitoira na mão, estão reunidos e preparam-se para a ceifa. Vê-se ainda mal. O céu só a custo se deixava atravessar pelos primeiros laivos da alvorada. A seara estende-se pelo campo a perder de vista, ondulando como mar calmo embalada pela brisa que se faz sentir na frescura da manhã. As mulheres tagarelam, de lenços amarrados na nuca, os homens ainda recolhidos e calados aquecem as gargantas bebericando uns pingos de aguardente e comendo uns figos secos, com os seus chapéus de aba larga já enterrados ate ás orelhas. Lestos e sem descuido apressam-se no seu trabalho. Os braços parecem ceifeiras mecânicas, tal a desenvoltura dos seus movimentos. As praganas aloiram, as cigarras zumbem, as águas de regadio correm docemente por entre cômoros. Os primeiros raios de sol depressa incidem sobre aquele mar de espigas amarelas, douradas, reflectindo o calor que se adivinha.
- Há pão amargurado que o diabo amassou!!!…
O silencio de pedra dos campos começa agora a ater uma animação festiva. é a hora de rapidamente amarrar o centeio com “nagalhos” em palha que ficam espalhados pelo restolho escaldante como um campo de corpos adormecidos numa promiscuidade de animais.
Mas já no curral os bois ruminando pachorrentamente a erva verde e tenra, salivando pelos cantos da boca, esperam que o lavrador os “junga” ao carro de madeira. Carregados até mais não, gemendo, e numa chiadeira dolorosa do seu eixo de madeira trilhando uma vereda estreita e íngreme, com os animais de cabeça baixa concentrando no seu cachaço duro e calejado pela canga todo o peso e esforço exigido. Na sua frente, o lavrador de aguilhada em punho, incita os animais:
- Anda “castanho“ !!!… aahh bicho lindo !!…
- Aperta “castiço“!!!... vales quanto pesas!!!… aarrre cá bois….
E os animais no seu ritmo pachorrento, arrastado, ferram os canelos no solo duro, e redobram as energias. Os seus corpos transpiram libertando vapor como caldeiras fumegantes, Compensando o seu esforço titânico o lavrador acaricia-os afagando-lhes o “marradoiro“:
- Lindos…. lindos… meus bois lindos… valentes …
Os molhos estão frente a frente na eira, e em duas filas paralelas os malhadores erguendo os seus manguais num compasso ritmado, vão batendo, fazendo soltar o grão. Ao lado as mulheres, cantando e rindo vão separando a palha do grão, e aliviando-lhes a secura das suas gargantas.
- Uma pinga ti Manel!!!… beba lá que vocemecê já o mereceu… este é do bom…
- Tome lá ti João beba lá um gole… mais um copito, mas cuidado que este é rijo…
- Ao diabo a sede que nos dana….
Na eira só o grão e a pragana.
(CONTINUA NO PRÓXIMO NÚMERO )