SANFONINAS

dr. jose
A estrela da tarde
Acho que nunca a vira assim.
Pelas onze da noite, num céu limpidamente acinzentado, quase a descer o horizonte. Segundo a minha orientação, está a oés-noroeste. Ou a noroeste, talvez.
Encanta-me o seu brilho enorme.
Nunca a vira assim, tão brilhante, a desafiar as estrelas verdadeiras, ela que, apesar de ser (agora) a «estrela da tarde» e, no Inverno, a «estrela da manhã», não passa de bonito planeta. Vénus. Compreendo, finalmente, porque é que os Antigos lhe deram esse nome de deusa do Amor, sempre supostamente a mais linda das deusas.
Lembro-me de pequeno, do alto do Cerrito, no Barrocal algarvio, minha avó me dizer:
– É a estrela da tarde. A primeira que se vê quase ao sol-pôr. No Inverno, é a única que continua brilhante antes de o Sol romper.
Sempre me fascinou.
E dou comigo a deixar-me fascinar de novo. Agora, no crepúsculo da vida.
Tudo por via de um ser (ele é um «ser»?...) que, enigmático, sorrateiro, maligno, feroz, implacável, obrigou os habitantes humanos do planeta Terra a parar, a deixarem ver o céu estrelado, sem fumos poluidores. E a reaprenderem tantas coisas de que, na imparável velocidade dos seus dias, haviam desaprendido: que havia estrelas, planetas; a Lua tinha fases e todas as noites se podia apreciar um bocadinho mais da sua superfície quando o quarto era crescente…
E que uma aldeia – como escreveu um poeta (tinha de ser!) – pode sonhar alto, mediante o entrecortado ladrar dos seus cães, ou deixar-se embalar pelo compassado grigri dos ralos e dos grilos…