PASSADO EM LEMBRANÇA

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A SOMBRA DO VENTO
Do tempo em que ainda as ruas não estavam iluminadas e das janelas se falava com a luz do luar e a claridade viva das estrelas. Nos pinheirais se ouvia o gemer do vento, o piar do mocho, e a noite a chorar. Noites negras como o corvo que Noé soltou no ar quando o dilúvio tumultuoso baixou e que nos causavam terror. Era noite, ainda vinha longe a madrugada, pairavam fumos de sobressaltos nevoeiros de vozes e rumores.
Noites de lendas, lubisomens e feiticeiras. E as sombras que batiam asas nos arvoredos e se projectavam com tamanha nitidez sobre as paredes e a terra e o frio agreste que por misterioso desígnio da natureza, quase fazia sentir as pedras a desmaiar. Lá ao longe o monte da Srª. do Castelo onde pelos vales e píncaros da serra, com nódoas de penumbra se ouvia a voz sonâmbula de pequenos ribeiritos extáticos vagueando o luar da imagem das raposas sedentas que neles iam beber. Superstições e lendas povoavam a mente das pessoas.
-Lá vai a tia Maria Carriça! ... É uma feiticeira .. ( comentavam os vizinhos espreitando pelo postigo, mal a viam transpor o umbral da porta)
- Vai pró “voanço”!...
- Eu já a vi transformada em cabra e a cavalo numa vassoura!...
- Estou aqui para ver se amanhã aparece toda esgadelhada!...
À meia noite numa encruzilhada qualquer bailavam e cantavam em roda em noites de lua cheia, tendo no meio um figura demoníaca um grupo de feiticeiras, mesmo chovendo em bátegas pesadas e o vento forte em turbilhões de choro galgasse outeiros, montes e quebradas, antes que surgisse a divina madrugada das estrelas, das nuvens e do vento voavam por cima de todas as folhas invocando a ordem de um ritual por elas expresso: - Voooa ... voooa por cima de toda a folha. Mas se se enganassem por fatalidade do destino o seu voo planado tomaria a direcção errada, transpondo densos silvados. Em noites alternadas cavalgava pela rua principal da aldeia, arremetido por uma matilha de cães frenéticos um lubisomem, esfinge de um «centauro», metade homem metade cavalo. Tamanha correria e galope, tão grande era o ecoar dos seus duros cascos na terra batida da rua que nos levava a esconder a cabeça debaixo dos cobertores. E para quebrar o seu dom ou encanto, teria que ser picado com uma aguilhada dos bois á sua passagem. Atormentavam-nos breves melancolias e tristes mágoas que eram como almas a voar. Mas de tal modo esse ar iluminado nos deslumbrava e dominava que a nossa crença se sobrepunha á nossa racionalidade como se descobríssemos fora de nós um sonho redentor. Era tudo uma ilusão vaga de luar.
Dias fantásticos que amei, de clarões e de silêncios, lembranças de alegrias amanhecentes outras mais tristes do passado, mas que o tempo foi levando.