SANFONINAS

As gavetas
Roubo o título a um dos mais recentes livros do nosso cardeal José Tolentino Mendonça, «Introdução à Pintura Rupestre» (Assírio & Alvim, Outubro de 2021). Inserto na p. 35, o poema reza assim:
Uma velha cosmogonia
associava a gaveta à ferida primordial
dizendo ser o buraco por onde escoamos
gota a gota
a porção que nos coube do dilúvio
Não nos coube muito, é certo, mas dá para ir atafulhando coisas e mais coisas e, a determinado momento, «Eu acho que tinha posto isso aqui, mas no meio disto tudo como é que eu o vou encontrar?». E dá-nos na veneta despejar tudo no chão!
Na verdade, aquele foi mesmo um buraco por onde se foi escoando muita coisa, gota a gota!…
A palavra «gavetas» trouxe-me à mente três imagens.
Bem, a primeira é essa, amiúde arreliadora, a da desordem mais completa de algumas das nossas gavetas! Como está habitualmente fechada, a gaveta não mostra o que vai lá dentro e remexê-la à cata de qualquer coisa traz sempre aquele nervoso miudinho a crescer desamparado… Hoje, até já inventaram assim uma espécie de caixinhas com compartimentos, para ajustar na gaveta e dão um jeitão!… Abençoados!
A segunda é a dos contadores orientais que a gente vê nos museus. Cheios de gavetinhas, algumas de segredo. A proprietária (sim, tinha que ser proprietária e não proprietário!) sabia exactamente o conteúdo de cada uma.
A terceira imagem que me ocorreu foi a do quarto de vestir de D. Irene Ferreira do Amaral, esposa de Álvaro Sousa, no Casal de Monserrate, Monte Estoril: «camisas brancas», «peúgas pretas», «botões pequenos»… Uma infinidade de etiquetas a identificar o conteúdo de cada gaveta e a facilitar aquele momento apressado em que já estamos atrasados para a cerimónia… Achei um mimo!
Fez-me bem, na juventude, a leitura d’«A Arte de Estudar», de Mário Gonçalves Viana (Editora Educação Nacional, Lda – Porto, 1945). Obrigou-me a reflectir na importância da organização tanto a física como, sobretudo, a mental. O dar atenção a um pensamento de cada vez, sem atropelos! Ai, mas as gavetas!…