A INSPECÇÃO DOS MANCEBOS


IR ÀS SORTES  
Com brandos e leves suspiros olhos deslumbrados coração a pular e um nó apertado na garganta perante os números e siglas indecifráveis rodando nervosamente a boina entre as mãos seguiam àvidamente as insípidas listas , consultavam repetidamente as pautas afixadas nas vitrines da Câmara Municipal ou da Junta de Freguesia numa tentativa incrédula de uma absoluta certificação do local de incorporação . Os mais canhestros socorriam-se da ajuda de colegas e amigos para a sua leitura : 

  • O mancebo… deve apresentar-se no dia… no quartel… para inspecção militar.  
    Manifestava-se no seus rostos um desespero mudo que se condensava em lágrimas mas sobrepunha-se a alegria de pela primeira vez estrearem um fato novo com calça vincada de bainha larga e casaco à três quartos com colete a condizer , camisa imaculadamente branca bem engomada , gravata de cores resplendorosas de nó ( nagalho ) grosso , sapato de cabedal bem engraxado e luzente . O momento era único e irrepetível . Era a tropa !…. Dizia-se que era lá que se faziam os homens . Era o ultrapassar da fase de rapazola para homem feito e pronto para a vida . Exibiam com todo o pudor a sua pura nudez numa despida sala de quartel onde todo o seu corpo ardia em chamas de ansiedade contrastando com o murmúrio de sombra , névoa e luz do ambiente que deixava atrás de si o sol poente . 
  • Mexam-se, parecem umas meninas puritanas…. (gritava o sargento com voz autoritária de comando). 
  • Abre a boca … mostra a língua e os dentes …. As solas dos pés… tens alguma doença?!… (balbuciava o enfermeiro (tenente), retorquia o médico (capitão) 
  • Apto para todo o serviço militar .  
  • O próximo… 
    Cabisbaixos e envergonhados seguiam em fila como cordeirinhos que correm para o bardo seus corpos brancos de neve adornados de vincadas zonas tisnadas pelo sol . Apenas não lhes era inspecionada a nudez da sua alma porque era uma coisa só sua íntima que não era partilhada com ninguém . Regressam euforicamente á sua aldeia que toda a vida lhes deu colo e lhes cantou melodiosas canções para adormecerem enquanto meninos e que nem o tempo dissipou já habituados aos seus brandos murmúrios de água e de folhagem com perfumes de flores silvestres e luz de aurora nascente . Exibiam orgulhosamente as suas fitas ou laços na lapela do casaco : vermelha livre , verde apto ou amarela condicionados a uma situação de espera para inspecção no ano seguinte . O dia era de festa . Triste para os que não iriam cumprir o serviço militar condicionados por qualquer estado físico , alegre para os saudáveis que tinham orgulho em defender a pátria mãe , um amor que tinha valor dentro deles . Bravos de génio e inchados de ufania . Nada poderia correr mal depois de um almoço bem regado numa exaltação de juventude , uma espécie de carta de alforria , que com malícia era também um dia especial de “ir ás mulheres“ pela primeira vez para alguns. O acordeonista estava contratado e os foguetes guardados e fechados numa loja a ferrolho corrido não fosse “ o diabo tecê-las” e o fogo estrondosamente rebentar . Havia festa até aos últimos lampejos de um sol poente . Com pálidos murmúrios e reflexo de vozes indefinidas despontava já uma noite de pálido silêncio e lua nova . A vida estava ali , a dois passos para ser louvada e vivida no dia seguinte .