TEMPO SECO

Autopromoção para Comendador
Ao Exmo. Senhor Presidente da República Portuguesa.
Excelência:
Sou cidadão português, proveniente das classes mais desfavorecidas do “tempo da outra senhora”, a quem a famosa “revolução do cravos” abalroou sem dó nem piedade. Esta democracia bastarda e seletiva, que tratou e trata de forma distinta e pouco digna as classes mais desprotegidas e honestas, que não elege sequer um comendador, desta abundante classe social, sacrificada e eternamente esquecida, não pode ser levada a sério, por mais que V.Exa. a venda, em forma de louvores e comendas, a todos os pimpões do 25 de Abril e outros traidores e corruptos, gerados nesta pátria há muito adormecida.
Nunca tive o privilégio de ser menino, nos meus tempos de criança. Fui um desditoso pé descalço, igual tantos outros dessa época, que frequentou a escola primária. Os meninos do meu tempo: eram filhos de “gente alta”, que olhavam com desdém, as nossas sacolas de pano, as nossas calças remendadas e não jogavam a bola, de trapos, connosco: os garotos da escola.
Trabalho duro no campo, eram os nossos deveres escolares e os nossos tempos livres. Muitos ocultam esses fatos, por vergonha das suas proveniências.
A minha emancipação, chegou aos doze anos, quando ao arrepio das vontades familiares, tomei o velho “pouca terra” para Lisboa, sem um rumo predefinido ou prometedor. Aí, a desilusão não foi inferior, à ilusão que me levou até lá: indigente aqui, desgraçado lá. Há adversidades que nos perseguem, por mais que se lute contra essa impiedosa falta de sorte ou desamparo social, a que a gente como eu fomos severamente submetidos.
Rumei ao ultramar português. Naquela altura, lá a vida já dava para sonhar um pouco mais além. Nada tinha a ver com a pequenez deste embrião de país!… Alicercei substancialmente os conhecimentos escolares e angariei muitos amigos de cá e de lá, numa harmonia exemplar, que alguns analfabetos por cá, nunca souberam digerir com bom grado e inteligência. A vida é assim: encantos e desencantos. Contudo, fui militar naquelas terras, ao serviço desta nação, e nunca sequer pensei em fugir a esse dever patriótico, como muitos dos intrujões agraciados por V.Exa.
V.Exa., sabe tão bem como eu, embora opte por ocultar, a tragédia que foi a revolução dos cravos, para muitos que tinham escolhido aquelas terras, como pátrias suas e… zás! -”Vai-te embora, que isto é só para gente vermelha”. Vermelha como a cor dos cravos da gloriosa revolução, que se processou neste resignado. país. V.Exa., nunca tentou indagar porque só usaram cravos vermelhos?!… Bom, agora é tarde para tentar saber o porquê ou até para lamentar.
Recorri a outras latitudes, para adquirir meios, e mais conhecimentos, que esta madrasta pátria, sempre me negou. Por isso nada lhe devo e na minha provecta idade, nada de substancial espero dela.
Mas, o reconhecimento de um austero curriculum de vida, numa pessoa, anónima, e de um vasto e desprezado extrato social deste pais, merece com mais justiça, um louvor oficial, que uma grande parte dos parasitas já agraciados.
Atentamente.