SANFONINAS

Aqui era o quarto!
Sempre me deliciou a frase “Aqui era o quarto”.
Fazia uma pausa e olhava derredor, a ver as reações dos estudantes. Explicava-lhes depois que não havia dúvidas: o resto do mosaico, de teor geométrico, qual esteira, junto ao que restava da parede indicava, sem sombra para dúvidas, que ali houvera um leito, ali haviam repousado, há dois mil anos, seres como nós, após a labuta quotidiana.
O silêncio que pairava sobre a cidade de Conimbriga, nessa tarde serena da visita de estudo em semana da Queima, ajudava a imaginação a espraiar-se em mentes juvenis e sonhadoras… Um dia, também terão um quarto, onde almejam dormir ternamente acompanhados…
“Aqui era o quarto”. Agora, mais de quatro décadas passadas sobre essas inesquecíveis visitas de estudo, não é que a frase se veste de mui outras roupagens?
Muito ano a lutar pelo património edificado, mormente o que é de características locais, “aqui era o quarto” transporta-me sempre para aquela casinha antiga, sobre a suavidade da colina, do lado norte da A6 antes de cortarmos para Montemor. Sinto-lhe o choro, pelo abandono a que a votaram, sempre que por lá passo. Vi, há, dias, que já caíra parte do telhado. Imagino que, algum dia, o proprietário ou um descendente dele ali venha e aponte: “Sabes, aqui era o quarto!”.
Mas, nesse percurso Alentejo fora – e não só – muitas paredes decrépitas gostariam de ouvir a frase, sinal de que alguém poderia estar de novo a interessar-se por elas. O véu da tristeza as envolve.
“Aqui era o quarto” estamos agora a ouvir quase diariamente. O míssil caiu em cheio e tudo ficou irreconhecível. O senhor de idade, único que ousara ficar, a voz embargada, as lágrimas há muito que secaram.
Sob aquela aba de prédio urbano, a frase mudou de tempo: “Agora, amigo, o meu quarto é aqui!”. No montinho de jornais, o canito levantou a cabeça a mostrar olhar ternurento e sereno; bem encostada à parede, a trouxa envolvida em manta velha. “É verdade, amigo, durmo aqui há seis meses. O meu quarto, agora, é aqui”.
E assim fico, de olhos nos longes do território e da História. E a frase, com todos esses instantes parados no tempo, insiste em permanecer comigo, bem viva.