NOTÍCIAS DA VELHA LISBOA POR DAMIÃO DE GÓIS


Damião de Góis foi guarda-mor do arquivo real português. Tendo falecido no dia 30 de Janeiro de 1574, foi sepultado na capela da Igreja da Vila de Alenquer.
O arquivo que Damião de Góis “supervisionava encontrava-se barricado dentro de uma torre no castelo de São Jorge, no alto de uma colina de Lisboa, local que foi romano, em seguida árabe e, depois, uma fortaleza da coroa portuguesa, apesar de então já ter sido em grande parte abandonado pela corte, pois a família real preferia viver no mais moderno palácio à beira-rio. Damião vivia a curta distância da Torre do Tombo – Torre dos Registos – numas casas que davam para a Casa do Espírito Santo, onde os habitantes do castelo assistiam às cerimónias religiosas da igreja”1. Alguns dos mais preciosos documentos lá guardados eram mais antigos do que o próprio país e respeitavam à sua fundação em 1139.
O edifício sucumbiu devido ao terramoto de 1755, mas a torre subsiste, embora agora esteja vazia. Em tempos foi o local de “armazenagem da memória de Portugal, uma câmara obscurecida onde eram mantidos todos os segredos do reino”.
A presença portuguesa fez-sentir por todo o sul da Ásia, as costas de África, Macau, Sião, Malaca, Bengala, Coromandel, Guzarate, Pérsia, Ormuz, Etópia, costa suali, ilha de São Lourenço (Madagáscar), Moçambique, Cabo, Benim Magrebe, Cabo Verde, Canárias, Madeira e Açores. Portugal foi durante grande parte do século XVI a principal ligação entre a Europa e a maior parte do mundo.
“Lisboa e o seu amplo estuário sempre haviam sido um ponto intermédio ideal onde o Norte e o Sul podiam conviver, um local conveniente para os navios se encontrarem, entre os grandes mercados da Europa do Norte, onde a Inglaterra e a Alemanha se abasteciam nos portos de Antuérpia e Amesterdão, e os grandes mercados do Mediterrâneo, onde mercadorias que vinham de Alexandria e de Istambul passavam por Veneza e Génova”. Este mercado continental passava pela Alfândega Nova de Lisboa e encaminhava-se para a praça onde os produtos locais se misturavam com as importações. Todos os dias enchiam a praça: pasteleiros, vendedores de fruta, talhantes, padeiros, doceiros e tecelões. Porém, os principais eram os peixeiros, cujo negócio era tão grande que tinham de alugar um cesto para poderem vender, pagando 200 ducados por ano.
O maior dos reis, D. Manuel, era escarnecido como rei merceeiro “pelos desdenhosos reis do Norte”, mas a vergonha era possivelmente atenuada pelos extraordinários lucros. Começando pela África ocidental, cujos produtos eram recebidos na casa da Mina, Damião de Góis indicou ouro, algodão e ébano, peles de vaca e de cabra, arroz e “grãos do paraíso” ou malagueta. Do Brasil vinha o melhor açúcar e o pau brasil. Da Índia e da China vinham seda, gengibre, noz-moscada, cânfora, canela, tamarindo, ruibarbo e “mirobólano” (abrunho). As casas da cidade estavam revestidas com madeira da Sarmácia, do mar Negro, e das Américas, via Sevilha, chegavam pérolas e cascas de guayacán. Damião de Góis inclui também mantos e toucados feitos de penas de pássaro pelas gentes do Brasil e das Canárias, panos de fibra de palmeira, recipientes de ouro e prata feitos na Índia e na China, bem como porcelana chinesa, panos de cascas de árvore provenientes do Congo, que mal se distinguiam da seda. O comércio da pimenta, reservado ao rei, atingia duas mil toneladas por ano, que rendiam mais de um milhão de ducados.

1 V. A Torre dos Segredos, de Edward Wilson-Lee