SANFONINAS

dr. jose
SANGRIA DESATADA…
Desde pequeno que me habituei a ter tios e primos por Franças e Araganças. Sei que há familiares meus em Meknés (Marrocos); nunca os conheci, que para lá foram, de S Brás de Alportel, trabalhar nas pedreiras, quando o são-brasense João Rosa Beatriz, vice-cônsul de Portugal em Mazagão, lhes facilitou os vistos, na 2ª década do século XX. Lembro-me vagamente de minha avó falar também de parentes nossos na Argentina. Já mais tarde, nas décadas de 50 e 60, radicaram-se em Toronto, no Canadá, membros da família Encarnação e por lá fazem a sua vida. Primos direitos labutam na França e na Suíça.
Creio não haver família alguma minha conhecida, da minha geração, que não tenha filhos no estrangeiro. Este, no Qatar; aquele, na Austrália; aqueloutros em Macau, em Angola, na Inglaterra, na Bélgica, na Escócia, na Suécia, no Brasil… Como escreveu Júlia Néry, «que o português é semente que em qualquer terra dá fruto…»!
As telecomunicações destroem a distância, é certo; os voos mais baratos facilitam enormemente as deslocações – mas, diga-se o que se disser, é bem diferente o beijo doce enviado pelo skype do abracinho terno e quente em presença!...
Globalizámo-nos, justifica-se. Passo, porém, nos arredores de uma qualquer cidade do nosso interior. Para ali se planeou, com «dinheiros europeus», vistoso parque industrial, cujas maravilhas se proclamaram na Comunicação Social, presença de senhores ministros aquando do lançamento da 1ª pedra, discursos laudatórios mui fecundos em números a haver, promessa de centenas de empregos novos, juras de fixação das gentes, a evitar a fuga para as grandes cidades do litoral e, agora, para a estranja. Mas… os parques ficaram-se pelas infra-estruturas, ora a apodrecer sob o peso das intempéries, e os empregos não vieram!...
Sentimos na pele a ferida aberta da neta que também já partiu, do filho que é «português no mundo» e que Alice Vilaça até é capaz de vir a entrevistar pró seu programa na Antena 1…
Dói.
Sangria inestancável, desatada...
Formámos gente cujos elevados méritos são agora outros que os aproveitam.
Dinheiro deitado à rua!

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A frase vista de frente

O profeta Habacuc em Alverca da Beira
Sempre o Homem se sentiu levado a deixar rasto da sua presença, através da escrita, num local que particularmente o emocionasse. Vejam-se as gravuras de Foz Côa: o sítio convida à meditação, parece haver algo de especial no ar e o homem pré-histórico deixou-se inebriar pelo ambiente e não resistiu a gravar nos rochedos aquilo que lhe era mais familiar e necessário: os animais. Da mesma forma, em tarde estival, num parque, aquela árvore de casca rugosa incita o par de namorados a nela gravarem seus nomes dentro de um coração trespassado pela seta de Cupido…
Estuda a Epigrafia esses escritos que, em todos os tempos, documentam a passagem do Homem por um local agradável ou significativo para ele. E o que haverá de mais significativo e agradável do que o lar? Por isso, deparamos amiúde com frases gravadas, por exemplo, nos lintéis das portas. Frases que, mais tarde, com a difusão do azulejo, nesse suporte irão encontrar a localização ideal. «Bem-vindo seja quem vier por bem!»…
Nem sempre, porém, a leitura é assim tão fácil nem a interpretação acessível. Por vezes, até nos interrogamos se o carácter sibilino de algumas dessas frases não terá sido mesmo propositado, para despertar a curiosidade ou para não ser por todos compreendido. Aliás, até acontece que uma legenda possa estar há séculos bem à vista de todos e ninguém, ao pressentir tratar-se de um enigma, lhe ligar importância nem ter curiosidade.
Um dos objectivos do docente de Epigrafia é precisamente o de incitar os seus estudantes a nada deixarem passar, a serem curiosos até mais não. Daí que Filipe Pina, ao passar pela Rua de S. Sebastião e pelo Beco de S. Sebastião, em Alverca da Beira, do concelho de Pinhel, ao ver estranhas ‘garatujas’ no lintel da porta de uma das casas, não tenha hesitado: fotografou-as e enviou-mas. Em escrita cursiva de certa elegância, encimado a meio por uma espécie de estrela, o texto distribuía-se por duas linhas.
Estranhas, de facto, também a mim me pareceram, designadamente por estarem em cursivo, o que não é habitual em inscrições deste tipo, onde o uso das capitais é predominante. Consegui decifrar uma que outra palavra, consultei o meu amigo Padre Afonso Cunha, da paróquia de S. Brás de Alportel, e… lográmos chegar a uma conclusão: estávamos perante uma brevíssima passagem retirada da Bíblia, mais precisamente do capítulo III do livro do profeta Habacuc, como, aliás, expressamente ali se indica:
Stetit, et mensus est terram.
Habac. Tert(io) in Cap(itulo)
«Estacou e mediu a terra»
Habacuc, no 3º capítulo
A frase completa, em latim, segundo a versão da Vulgata (cap. 3, versículo 6), é a seguinte:
«Stetit, et mensus est terram; aspexit, et dissolvit gentes, et contriti sunt montes saeculi: incurvati sunt colles mundi ab itineribus aeternitatis ejus».
As traduções que se apresentam não são coincidentes nem seguem à letra o que lá está escrito. Da vida do profeta Habacuc nada se sabe, a não ser esse livro que a tradição nos legou. Aí, o profeta começa por se mostrar indignado ao verificar que os justos tanto padecem, enquanto os ímpios gozam a vida. Isso expõe a Deus, o Qual lhe responde que Judá será castigado: virão os Caldeus, que, instrumentos da cólera divina, pesada derrota lhe vão infligir. Perante essa resposta, o Profeta rejubila e reza, proclamando, no III capítulo, a força do Senhor. É precisamente dessa parte o trecho que foi gravado no lintel; e o texto completo que acima transcrevi pode traduzir-se assim:
«Estacou e mediu a terra; observou e dissolveu os povos e ficaram desfeitos os montes seculares: aplanaram-se as colinas do mundo pelos caminhos da sua eternidade».1
Ou seja, perante o avanço do mal, Deus manifestou o Seu poder, semeando a destruição. Uma divindade justiceira, portanto, que dá liberdade só até certo ponto, porque actua depois em toda a Sua plenitude.
Colocada sobre a porta da casa, a frase terá, por conseguinte, essa função de afastar as forças do mal.
Evidentemente que ficou célebre, séculos afora, esta frase de Habacuc e por isso a vamos ver frequentemente citada nos mais diversos contextos, sempre, todavia, com esta ideia de que Deus é protector e vencedor do mal. Limitar-me-ei, a título de curiosidade, a transcrever uma passagem da homilia de Ildefonso, cardeal arcebispo de Milão, na vigília em honra da aparição de Nossa Senhora em Lourdes, a 10 de Fevereiro de 1945, em compreensível (ao tempo) diatribe contra a doutrina comunista, apresentando, aliás, uma versão ligeiramente diferente da original:
«Per combattere questa speciale forma di occulto Satanismo, avversario non meno della Religione, che di tutte le Patrie, non c’è che Cristo. Egli solo può vincere Satana e incatenarlo ai suoi piedi, come ce lo spiega Abacuc nel suo Cantico: (Deus) stetit et mensus est terram; ante faciem Eius ibit mors. Et egredietur diabolus ante pedes eius…»2
Em conclusão:
Gentes e gentes passaram e continuarão a passar diante desta porta de Alverca da Beira. Só o olhar do epigrafista nela reparou com atenção e quis satisfazer a sua curiosidade, como aprendera a fazer. E assim, doravante, não apenas os proprietários da casa se sentirão mais aconchegados, como se saberá em Alverca que, um dia, em tempos longínquos, um homem culto quis, quase secretamente, mandar gravar à entrada de sua casa, uma informação sagrada e uma profissão de fé: Deus está aqui e de tudo se apercebe e saberá, portanto, dar o devido valor a quem realmente o merece.

1 Não corresponde exactamente ao que escrevi a tradução que vem na 3ª edição da Bíblia Sagrada (Difusora Bíblica, Lisboa, 1968, p. 1608): «Pára e faz tremer a terra. Olha e faz vacilar as nações. As montanhas eternas são reduzidas a pó. Desfazem-se as colinas antigas, Seus caminhos de sempre». Sem querer entrar em pormenores, que não vêm agora ao caso, observa-se que a tradução da Difusora utiliza as formas verbais no presente, quando o texto está claramente no passado.

2 «Para combater esta forma específica de oculto Satanismo, adversário não apenas da Religião, mas de todas as Pátrias, só temos Cristo. Só Ele pode vencer Satanás e agrilhoá-lo a Seus pés. Como nos explica Habacuc no seu Cântico: (Deus) estacou e mediu a terra; estará a morte d’Ele. E diante de Seus pés fugirá o diabo».