SANFONINAS

dr. jose
Aquele toque incessante…
Saboreava eu frugal pequeno-almoço. O Spike adormecera no chão, num respirar mui sereno. Aquele toque chamou-me a atenção no silêncio enorme da sala, que a serenidade exterior complementava. Nem um raminho do pitósporo bulia. Eram os segundos do relógio de parede. Um após outro, um após outro. Divertia-se o ponteiro, achei eu, a dar saltinhos a cada segundo que para mim deixara de existir.
Dei comigo a pensar nos monges de antigamente. Havia as Laudes, logo pela manhã. Se calhar, ainda há, nomeadamente em mosteiros de clausura. Laudes, o começo da jornada, a louvar a alegria de estar vivo, de ter um dia pela frente. Cantavam as Vésperas ao cair da tarde. Vinham depois as Completas, a concluir o ciclo diurno.
E lembrei-me do toque das ave-marias, a regular a labuta nos campos, do nascer ao pôr-do-sol, com a necessária pausa do meio-dia. Mesmo nos meios urbanos, os párocos fazem questão nesse toque das Trindades, como para lembrar que há tempo para além do tempo. Ao meio-dia, junta-se ao Angelus, em muitos sítios, o toque lancinante da sirene dos bombeiros. «Já é meio-dia, senhores?! Como o tempo passou depressa!».
Ainda bem se a sensação é essa – que, para idoso num lar sem visitas nem gente que o possa acarinhar, dar-lhe a mão, fazer-lhe uma carícia e ele a sentir-se ainda gente… para idoso assim, que martírio esse lento e taciturno escorrer monótono das horas, pautadas somente pelo ritual das refeições…
Tanto que tenho lido – e até escrito! – sobre o tempo, que, felizmente, desde moço me habituei a usar bem! No colégio, era meia-hora para as abluções matinais, dez minutos para o banho de chuveiro semanal, meia-hora para as ‘ocupações’… ‘Ocupações’: curioso nome dado às tarefas diárias, por que todos tinham de passar, a fim de perceberem como se faz.
Lembrei-me, por isso, do anúncio do filme «Mãe Fora, Dia Santo em Casa», de Ludovic Bernard, que começa com o pai a dizer à mulher que ela é uma felizarda, porque põe os putos na escola e fica livre o dia todo. Ela tira, portanto, dez dias de folga e a família fica… sem mãe! Coitado do senhor, que nem calculava a quantidade de voltas que uma «dona de casa» (!) tem de dar! E ia deitando fogo à casa, o pobrezinho!...