SANFONINAS

Dar notas
Passei minha vida a dar notas. Estabelecia critérios, era de 0 a 20 e sempre me habituei a usar a escala toda, há alunos a quem dei 20 e outros a quem dei 0. Entre 0 e 20, uma infinidade de tons, porque me ensinaram que não somos todos iguais e há que premiar quem trabalha e chamar a atenção de quem precisa de se esforçar mais um bocadinho.
Admiro as corridas de Fórmula Um. Não apenas porque tive oportunidade de vibrar com algumas no Autódromo do Estoril – ai aquele Ayrton Senna de mui saudosa memória!… – mas, sobretudo, porque o primeiro lugar na grelha de partida é decidido às centésimas de segundo. Sei eu lá o que é uma centésima de segundo! O certo é que se sabe e, para ter unhas a fim de tocar nessa guitarra, há que treinar, treinar, treinar e obedecer a rigorosas regras, inclusive de alimentação e de comportamento.
Não seria, pois, difícil de perceber que regras idênticas se deviam aplicar no dia-a-dia. Mas não, não se percebe. Instituiu-se no funcionalismo público o sistema de avaliações. Falo do português. Decerto em todos os países se passa da mesma forma, porque quando um faz uma coisa os outros vêm logo atrás e copiam… Se tens a nota máxima, podes subir na escala. Hoje até isso não existe, porque desistiram de deixar subir. Se não tens ou andas assim assim, ficas aí, amochas. Claro, toda a gente passou a ter a nota máxima. Um dia, àquele funcionário que não fazia a ponta dum corno e que eu passara o ano a incentivá-lo e nada, quis dar-lhe a nota que me pareceu justa, até para ver se o espicaçava mais. Não me deixaram, porque assim, coitadinho, ia cair o Carmo e a Trindade! Não caiu. E o senhor lá continuou na mesma.
Disse-se dos critérios. A gente sabe quais são e adapta-se. Albarda-se o burro à vontade do dono, mesmo quando se reconhece asneira pegada. O dono quer assim, assim se faz. E o dono quer, porque do estrangeiro lhe disseram que era assim – e o que percebem os estrangeiros de como se põe bem a albarda ao burro, se eles nem burros têm? Mas peroram, ou seja, ditam leis. Assim, no âmbito académico universitário, para avaliar os docentes. Regras: tens de escrever em inglês; deves escrever muitas páginas; só podes publicar em revistas com todos os rr e ss, internacionalmente reconhecidas… «Mas eu gosto é de escrever numa revista local ou num jornal regional, para divulgar cultura!». «Poder podes, mas para currículo, menino, isso de nada te serve. Esquece!».