TEMPOS


O PILHA – GALINHAS
Um súbito alvoroço acordava a serenidade do ar quando à aldeia arribavam levas de saltimbancos e farrapeiros . Os tempos eram de fome e o seu instinto de sobrevivência levava que em bandos descessem ao povoado pedir algo com que dar de comer aos filhos . Moldado em fumos e penumbras , descalço e andrajoso no aspecto mas arguto e perspicaz , infiltrado no seio da turbe , impregnado de parcos escrúpulos , em mísero desespero arriscava deitar a mão e pilhar um franganote ou uma galinha, arrebanhar alguns ovitos esquecidos no cesto num ermo e recôndito canto da capoeira , trancada apenas por um simples caravelho . Esperava sempre o cair da noite . Entrava manhosamente de mansinho , sacava o franganote , a galinha , por vezes um galo pegando-lhe pelo pescoço para que não “ gritasse “ e tal como sorrateiramente entrara dissimuladamente cosido às sombras , saía como manhosa raposa com a presa já filada. Mais tarde ia vender na vila porta a porta . O preço era discutido entre o vendedor e o comprador sempre vantajoso para quem comprava . Nunca lhe era perguntado a proveniência da mercadoria e o pilha – galinhas nunca a ela se referia . Mas o tempo é bom conselheiro e a repetição dos actos originam a desconfiança . Os habitantes da aldeia logo se precatavam da sua chegada e a denuncia da sua presença era feita á “Guarda “ .
Naquela noite a colheita fora proveitosa , mas debaixo daquelas estrelas a sorte fora-lhe madrasta . Numa tomada de assombro em trágica e infinita solidão a “ Guarda “ deitou-lhe a mão já dentro da vila com o saco cheio .

  • Tinha três franganitos , duas galinhas e uns ovitos …
    Desabafou mais tarde junto de um companheiro de infortúnio
  • Levaram-me para o “ posto “ e dormi a noite no calabouço . De manhã um “ guarda “ corpulento , feios gestos e peluda cara , num jeito desengonçado , revestido de uma fisionomia trágica , punhos serrados gritou-me :
  • Olha bem para mim !!!…Já cá estás outra vez , grande sacana ? !!!!….
  • O meu coração estremeceu acometido de uma ansia de pecado como monstruosa estátua carcomida .
  • Põe- te de cócoras valentão da noite . Porque és mais triste agora do que dantes ?!!!…
  • Um suor frio percorreu-me a espinha . Invadiu-me um formigueiro da ponta dos cabelos até aos dedos mindinhos .
  • Vou-te servir um aperitivo viajante da noite !!!!….
  • A correia nas minhas costas zumbia aos meus ouvidos como cobra cascavel
  • Gostas da receita ? !!! …Bem te conheço meu reles meliante !!!…
  • Os vergões vermelhos e profundos marcavam-me a pele . A cada correiada torcia-me e gemia .
  • A ver se apanhas juízo . Replicava o “ guarda “ sem instinto de piedade .
  • Grande pulha !!! …Falas porque tens a barriga cheia ( pensei eu cá para os meus botões ao mesmo tempo que a minha fronte ardente pendia sobre o meu peito ) .
  • Vai para casa e emenda-te . Se te apanho cá novamente o recital vai ser pior ….
  • Perante tal voz de pedra meditei …
    Os tempos eram duros , de pobreza e muita fome camuflada .
    Hoje tudo é diferente … , evolução dos tempos . Mas as fraquezas intrínsecas do ser humano persistem , sagacidade , egoísmo , inveja , ódio , esperteza saloia , apesar de serem muitos os direitos e poucos os deveres e obrigações .
    Mas os pilha-galinhas destes nossos tempos proliferam e sobrevivem na abundancia exibindo garbosamente a rotundidade dos seus bem nutridos abdómens.