Ensaio sobre a porcaria


Pretensão não, claro! Jamais teria competência para escrever ensaio digno deste nome e, muito menos, sobre tema tão arrojado. Senti, porém, a necessidade de me sentar nesta falésia sobre o mar da Arrifana a reflectir, na serenidade do sol-pôr, acerca da frequência com que se usam expressões como «Isto está uma porcaria!». Porcaria práqui, porcaria práli. Como quem diz: «Nada se aproveita!».
Impunha-se-me defender o animal.
Primeiro, porque, apesar do chiqueiro em que eles se moviam e de mui bom grado chafurdavam, sempre gostei de ver os porcos que meu avô paterno e minha avó materna foi tendo. Depois, porque, embora não quisessem que eu visse, o ritual da matança do porco era… um ritual! Em 3º lugar, desde cedo compreendi que, do porquito longamente alimentado com restos de comida e lavadura, tudo se acabava por bem aproveitar. Finalmente, muitas histórias de criança metiam simpáticos porquinhos pelo meio.
Não há, pois, direito que se dê à palavra «porcaria» a conotação hedionda com que diariamente a pronunciamos.
Não há direito!
E até me recordo, com ternura, das vezes em que meu pai me pedia:
– Pega aí numa mortalha e tira-me a porqueira que me foi prá vista!
Ele dizia «porqueira»! Uma lasquinha mínima de pedra que lhe saltara, quando abria os caboucos nos bancos da pedreira. Porqueira!
Assusta-me a conotação negativa. Sobretudo, a entoação pérfida facilmente atribuída àquilo que qual porcaria se classifica.
Não me parece bem.
Denuncia, da parte de quem a pronuncia, sistemático olhar de desagrado, mal cheiroso, perante a realidade e as circunstâncias da vida. Bem contrário, aliás, ao constantemente apregoado mas não entendido «Crise também é oportunidade!». Ou a uma frase que, em jovem, desde logo retive, ao ver pela primeira vez o filme «Os Dez Mandamentos» de Cecil B. Demille:
«Também na lama do Nilo vicejam as flores de lótus!».
Sim, acredito, crónica sobre a porcaria é, sem dúvida, uma porcaria. Mas… também pode não ser!