SANFONINAS

No meio da multidão
Sistemas de vigilância permitem identificar com inimaginável grau de nitidez um indivíduo a quilómetros de distância no meio duma multidão.
Nunca o suspeitou George Orwell. O seu ‘Grande Irmão’ tal capacidade não tinha; por isso, pôs Winston e Júlia, os protagonistas do romance 1984, a encontrarem-se no meio de um comício. Assim passariam inteiramente despercebidos.
Dessa mesma ilusão se fez eco uma das perguntas da série anedótica «Elefante», popular há umas décadas: «Como é que um elefante passa despercebido no Rossio?». «Em manada» – era a resposta.
Numa das saborosas crónicas do jornal Reconquista, de Castelo Branco, com que regularmente nos brinda, conta João Lourenço Roque como é deleitoso passatempo do «Portador de BI definitivo» ter «lugar cativo em bancos de jardim, mirando guloso e embasbacado as “gajas boas” que passam» (Digressões Interiores, Coimbra, 2011, p. 120).
Do ancião e não só!
E se substituirmos ‘banco de jardim’ por ‘banco de corredor de uma grande superfície’, mais nos aproximaremos desse passar despercebido no meio da multidão, habitualmente apressada e entretida com o telemóvel.
Para ele, porém, o tal ‘portador de BI definitivo’, ver gente rejuvenesce-o e, se ainda gozar de boa vista e tiver aguçado espírito de observação, deliciar-se-á com a extravagância dos penteados, o exotismo das tatuagens (as visíveis e as invisíveis imaginadas…), aquelas calças esfarrapadas, o difícil equilíbrio da senhora em milimétricos saltos altos… E mesmo que a cena se repita à exaustão, imaginará o mundo bem diversificado das mensagens de telemóvel que os transeuntes recebem ou velozmente digitam mesmo em andamento.
Não o deixarão indiferente os contrastes: o senhor de ar preocupado, taciturno, a correr; a senhora a dar ordens à secretária ou à empregada doméstica, enquanto ajeita o cabelo; o ancião, como ele, apoiado em improvisada bengala de cana-da-índia; o casal a empurrar, vaidoso, o carrinho de gémeos…
Ousará, por vezes, querer penetrar no âmago dos pensamentos Põe-se a adivinhá-los pelos rostos. E sentirá pena por, de dia para dia, o sorriso andar cada vez mais arredio, por mais tardes que ali passe a olhar. E seria tão benéfico esse suave movimentar dos músculos em todas as faces!…