SANFONINAS

Pingam as goteiras…

Pingam as goteiras no telheiro. Completamente descompassadas. Não sei bem se ainda chove e é o resto d’água acareado nas telhas ou se continua a chover. O som das pingas continua descompassado, intermitente, não é de aguaceiro nem de chuva forte.
Em tempo de guerra como é o nosso, embora dela pensemos estar longe, o matraquear das gotas lembra matraquear de metralhadoras.
É bom estar no sossego do lar, sem necessidade de sair para compras, para ir buscar comida, para nada. Bom ter um lar. Abrigo.
Ainda ontem à noite passei por um. Tinha um chapéu de chuva aberto e aconchegava-se à parede, embrulhado em manta coçada. Todas as noites que por ali passo, eu vejo o vulto. Sem-abrigo? Guarda da obra em frente? Por que carga d’água estará ali tantas noites? Ainda não tive coragem de parar e perguntar-lhe.
Tenho os pés quentes nas pantufas que há dias me ofereceram. Sinto a macieza da carpete que imita tapete persa. Bruxuleia ali, bem azulinha, a minichama do aquecedor, alaranjando a grelha em brasa. Hirtas, em duas esquinas do pilar da sala, duas longas esculturas de madeira são gatos estilizados. Hieráticos. Um tem olhos verdes e bigodes sobre o focinho rosado. Não sei que me quer dizer. ¿Que eu tenha paciência? ¿Que encare a vida com serenidade? Talvez.
O Spike veio pedir-me para ir à rua. Disse-lhe: «Está a chover, o dono já vai contigo!». Deitou-se, tranquilo, a meus pés.
Creio que os pingos-metralhadora já se calaram. E vou espreitar a noite com o Spike. Ceio que estamos em quarto crescente, mas as nuvens não me deixarão ver a lua. E tenho de olhar bem para o chão, não vá encharcar os sapatos nas poças.
Respira tranquilo o Spike. Sabe esperar, de cabeça apoiada no chão. Levantou-se agora, olha para mim: «Vamos?». Vamos.