SANFONINAS

Flagrantes
– Então, vizinha, não quis o outro autocarro e veio para a paragem deste lado, foi?
– Qual quê! O motorista eu fiz-lhe sinal, mas ele não parou. Não há meio de se endireitar este país!
A vizinha viveu, de facto, muito tempo emigrada num país europeu e decidiu passar a velhice em Portugal; nunca deixa passar uma oportunidade para verberar o que lhe parece menos bem.
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Os serviços de comunicação duma entidade enganaram-se na data prevista para um evento, integrado nas Jornadas Europeias do Património. António, sempre interessado nestas lides patrimoniais, quis inscrever-se. Não gostou do engano:
– Assim é difícil progredirmos, enquanto sociedade. Irra!
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No parque de estacionamento pago, o arrumador ia vociferando com os condutores – mormente senhoras – que não lhe davam gorjeta. Mal educadamente.
Perto, o funcionário da empresa gestora dos parques entretinha-se a ver o telemóvel. A Joaquina:
– Olhe, amigo, boa tarde, está ali um sujeito a incomodar as pessoas no parque.
– E que tenho eu a ver com isso? Não me estão a chatear a mim, pois não? Chamem a polícia!
– Ah! – replicou a Joaquina. – Só o treinaram a passar multas! Já percebi.
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Em pleno centro histórico citadino, a Maria, de braço dado com o marido, septuagenários, amparando-se, não se apercebeu do lancil e estatelaram-se ambos. De pronto, o senhor que estava perto se apressou a ajudar a levantarem-se. «Magoou-se?». O pulso sangrava um pouco. Uma jovem tirou logo da bolsa o lenço húmido para limpar o sangue. Um vendedor trouxe a garrafa de água para lhe lavar a mão. Boa parte dos intervenientes não falava o português de Portugal. Maria recompôs-se, palpou a perna a ver se havia problema. Os dois anciãos respiraram fundo, agradeceram. Olharam um para o outro, como que a perguntarem-se: «Tens a certeza que foi real isto que nos aconteceu?».
À noite, em telefonema a uma amiga, pôs em destaque os três flagrantes de que tivera conhecimento e de que, num deles, fora parte activa.